O Cristo da Mangabeira (por Antônio
Samarone).
A Mangabeira é uma pequena comunidade
camponesa, no pé da Serra Comprida, em Itabaiana. Vive-se plantando e irrigando
hortaliças, com a água da barragem da Ribeira. Exporta-se coentro e cebolinha para
Salvador.
A Mangabeira não tem nem ricos
nem pobres. Não tem fome, desemprego, prostituição, morador de rua, nem gente
fumando crack. A juventude tem escola. O povoado é todo pavimentado, tem água
encanada e luz elétrica.
Mas nada disso caracteriza o
povoado. Na redondeza, outros possuem a mesma qualidade de vida. A Mangabeira situa-se
no entorno de um grande anfiteatro, essa é a novidade. É uma pequena Roma com o
seu Coliseu. É nesse anfiteatro onde ocorre uma grande e inexplicada
manifestação popular.
Há 25 anos, a comunidade celebra
a Paixão de Cristo com uma surpreendente encenação teatral. No início era uma
via sacra dramatizada, depois evoluiu. Uma Nova Jerusalém de pé de serra. Tudo é
grandioso.
A comunidade entra de corpo e
alma. Cada figurante arca com as despesas do seu figurino, e não é nada simples.
Cristo, Herodes, Pilatos, Madalena, Barrabás, até o Satanás. Estão todos bem
vestidos. Um elenco de 90 pessoas, além dos figurantes e do pessoal de apoio.
A Mangabeira é uma comunidade de
católicos (a moda antiga). Tem uma capela patrocinada por São Joaquim e Santa
Ana. O padre, Fábio Gomes Negromonte, é da Paróquia da Imaculada Conceição e
São Lucas. No entanto, o vigário só assiste. Nem ajuda, nem atrapalha.
Tudo é por conta da comunidade. A
professora Vera e o agricultor Alex são os líderes. Seu Clóvis é a referência,
a quem todos respeitam. Alex é também o diretor artístico.
Edézio, um serralheiro, é o
Cristo, e Gladston (Gagá), o Satanás. Adailson é Herodes. Tudo ensaiado minunciosamente
ao longo do ano. Todos conhecem as suas falas. A sonoplastia é com Adelmo, tudo
no computador. O fundo musical é perfeito. A qualidade do som é garantida por uma
empresa especializada de Itabaiana. Todos os principais personagem tem um microfone
na lapela, daqueles que o William Bonner usa no Jornal Nacional.
A iluminação cênica fica por
conta de Lambão. Um gordo simpático, que usa tecnologia de primeiro mundo. Tudo
importado. Na retaguarda, um gerador de 700 KVA, para garantir que não faltará
energia. Tudo com efeitos especiais, focos e luzes coloridas. Numa cena, um
anjo surge das alturas, como se descesse do céu, movido por um guindaste de 60
metros.
Sei que vocês estão perguntando: e
quem paga essa conta? A prefeitura de Itabaiana ajuda. O evento é patrimônio imaterial
da cidade.
O que me parece é que no Brasil o
povo está pronto para crescer, para prosperar, construir um país civilizado,
para viver sem violência, sem esses ódios bestas. A elite é quem estragou, ou
já nasceu estragada.
Eu vi o Cristo na Mangabeira, na
religiosidade do povo. Tudo a moda deles. A narrativa, as estórias, a fé e a
falta de fé. Vi um público de três mil pessoas encher as arquibancadas, encher
a praça. Dezenas de ônibus despejando gente. Outros de carros, bicicleta, no lombo
de uma animal, a pé. Lotou de tabaréus,
para ver o Cristo na Mangabeira.
Todos muito atentos para ouvirem as
mesmas passagens bíblicas. A tentação de Cristo, a expulsão dos vendilhões do
templo, o perdão de Madalena, o sofrimento de Jó. Só o vinho não precisou seu multiplicado,
poucos na redondeza bebem na Semana Santa. Nenhuma barraca vendia bebida alcoólica,
isso eu investiguei.
Sei que vocês estão curiosos, e
uma festa desse porte não é manipulada pelos políticos. Achei que não... Todos lá,
apertando mãos, distribuindo sorrisos, mas sem protagonismo. Na Mangabeira o
povo tem de o quê viver. Essa condição é a base da liberdade. Não vi ninguém
arrodeando os políticos.
Assisti uma manifestação
religiosa autônoma. Ao mesmo tempo senti como a cultura possui um papel
agregador, como une as pessoas. Vivenciei uma manifestação de vaidade coletiva,
de força comunitária.
O Felipe, um garoto de 12 anos,
me disse orgulhoso: já fiz a minha parte, cumprir a minha missão. Eu perguntei
curioso, qual foi a sua parte? Ele encheu o peito: fui pegar o jegue que vai
carregar Jesus, e ainda vim montado.
Antônio Samarone.
Coisa linda Samarone. Não apenas pela manifestação popular, mas pela demonstração de independência quanto aos políticos no processo de organização e criação.
ResponderExcluirParabéns caríssimo Samarone! Que narrativa!!! E pensar que já me senti culpado como católico por nunca ter ido a Nova Jerusalém e a Mangabeira a disposição e eu tão perto!!!
ResponderExcluirTenho orgulho de ser filha da terra do Povoado Mangabeira!
ResponderExcluirParabéns Samarone pela belíssima narrativa, pelo olhar singular e observador que enalteceu o que o povo da Mangabeira tem de mais belo, a simplicidade!
ResponderExcluirFiquei encantado pela sua narração dos fatos, pela riqueza dos detalhes. Comunidade surpreendente pela sua simplicidade. Não sabia que existia, tão perto de mim. Quem sabe se no próximo ano, vou assistir. Obrigado Samarone.
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