Freud explica.
A psicanalise de um anúncio de
jornal, por Garcia Moreno, médico sergipano, já falecido.
O anúncio pela imprensa e pelo
rádio é objeto de uma atividade especializada, onde os conhecimentos da
psicologia têm ampla aplicação. Dizia Garcia Moreno: “O racional e o afetivo, a
sugestão e a convicção, tem o seu lugar próprio, a convocação estratégica, na
redação de um anúncio.
Garcia Moreno, ia mais longe:
O publicitário fita o mundo
subterrâneo do sentimento e das tendências instintivas para impor, de maneira
certa e segura, quase irracional, automática, com o império de um estimulo
associativo, a sugestão útil e calculada.
Quem quiser que manuseie as
revistas ilustradas deste doce mês de dezembro, mês dos presentes e dos
orçamentos atomizados, e veja as seduções psicológicas dos anúncios.
Mas não é tais anúncios que ele
analisava, eles são evidentes, não demandam a ginástica mental de uma
psicanálise.
Já o anúncio abaixo é mais
discreto.
O.M.L.
“Não decepador de boca, por ser
consciente nos serviços de clínica dentária. Especialista no aproveitamento dos
dentes, inclusive os condenados ao boticão e a lata do lixo, com rara exceção.
Não pagará um centavo, se o trabalho de clínica ou prótese não for perfeito.”
(O Nordeste, de 20/12/1952 – 1ª pag., 3ª coluna.).
É sobre esse anuncio banal, que
Garcia Moreno aplica a doutrina freudiana da psicanálise. Vamos a bela ginastica do nosso intelectual:
Note-se que castrar e castigo são
galhos de uma mesma árvore etimológica. A castração é, pois, o supremo castigo,
experimentado e vivido, com suprema angústia, na pré-história da personalidade.
Se a chamada amnesia infantil varre-a do campo da consciência, vai viver, para
sempre, na obscuridade do inconsciente, dissimulada mais ardente, como fogo de
monturo.
Na mecânica psíquica,
transmuta-se nas realidades simbólicas. Qualquer mutilação corpórea é um nexo
de associação inconsciente que reacende a ansiedade do temor remoto da
castração.
Psicanaliticamente, a queda dos
primeiros dentes tem o sentido vivencial inconsciente de uma castração imposta
pela mãe natureza, tão poderosa quanto o pai vingador.
Mas a natureza é ambivalente e
generosa. Castra, arrancando os dentes. Apiedada, regenitaliza com a segunda
dentição. Ao trauma psíquico, da simbólica castração dentária segue-se o
momento triunfal da refalização com os novos dentes que repontam, com o sentido
exato de natural compensadora prótese genital.
Note-se que o dentista do anúncio
é castrador e refalizador, um especialista no reaproveitamento dos dentes. O
odontólogo dos primeiros tempos, dos passos iniciais da profissão, era o tira
dentes, o castrador por excelência.
O clássico horror ao dentista
mutilador tem uma razão bem mais profunda do que a dor do arrancamento em si
mesma. É a revivescência do medo ansioso da castração.
O odontólogo moderno, com a sua
engenharia de pontes e os recursos da prótese atual, faz renascer no homem
aquele menino, perdido de contentamento, com a sua alegria de regenitalizado,
no triunfo inefável de quem sente, na 3ª dentição, a realização compensadora e
suspirada.
Quem repara na expansão jubilosa
dos que inauguram uma dentadura nova, anatômica e funcionalmente perfeita,
enxerga algo mais do que o prazer do sentimento estético da fachada humana
reconstituída ou da fisiologia restabelecida.
O dentista é identificado a mãe
natureza generosa e apiedada, que regenera, simbolicamente, o pênis e mergulha
mais fundo, no inconsciente do homem, o complexo trágico da castração.
Prometer no anuncio “não decepar
a boca”, primeira zona de fixação exógena da criatura, “aproveitar os dentes
condenados ao boticão”, constituem uma projeção de vivências e uma mensagem de
maravilhosa intuição, endereçada aos permanentes anseios de refalização do
homem.
O artigo analisado foi publicado por
Garcia Moreno, numa revista médica de 1953.
Antonio Samarone.
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