O mercado das doenças (por Antonio Samarone).
Recebi do Dr. Belisário Cruz, velho sanitarista, professor de Saúde Pública nas Minas Gerais, uma mensagem comovente. Após consultá-lo, decidi torná-la pública:
“Caro Samarone.”
“Após quase 50 anos de militância pela reforma sanitária, estou me aposentando. Entreguei os pontos! O meu sonho de professor, de formar médicos comprometidos em aliviar o sofrimento humano, chegou ao fim. A lógica do mercado invadiu a minha faculdade de medicina.”
“Como você sabe, as disciplinas da medicina preventiva (epidemiologia, saúde coletiva, saúde e sociedade); e das ciências humanas (antropologia, psicologia, sociologia, bioética, história da medicina, medicina legal) nunca foram bem vistas nos cursos de medicina. Eram toleradas! Os alunos, via de regra, cumpriam uma formalidade.”
“Hoje os alunos tripudiam sobre o pensamento crítico. A mediocridade tornou-se hegemônica. Qualquer conteúdo que não tenha fins práticos, que não desenvolva habilidades em produzir procedimentos, será rejeitado acintosamente. Uma aula que trate da alma, do sofrimento, da condição humana é vista como um desproposito. O aluno assumiu um pragmatismo arrogante. Uma autossuficiência centrada no Google.”
“Cada aluno guia a sua formação pela ética do resultado. O que eu posso ganhar com essa informação ou habilidade, ela serve para que? Esse é o caminho! Conhecer o que foi a medicina greco-romana, saber quem foi Hipócrates, Vesálius, Virchov, Pasteur; o que fez Oswaldo Cruz, etc., beira a inutilidade.”
“Perdi a esperança e a paciência, meu amigo Samarone.”
“Por fim, na última reunião do conselho do departamento de medicina, um fato me desapontou: um representante dos estudantes, propôs substituir as disciplinas de medicina preventiva por temas mais relevantes na formação médica. E sugeriu que no lugar da “saúde pública”, se colocasse “pequenas empresas, grandes negócios”; “propaganda e marketing”, “empreendedorismo”, etc. Tentei justificar a importância das ciências humanas, mas fui derrotado.”
“Foi a gota d’água! Após várias derrotas, de vê o nosso projeto de reforma sanitária afundando, confesso que esse foi baque mais profundo. Sair da sala meio zonzo. Baixei a cabeça, sair sem me despedi. Quando entrei no carro e fiquei só, percebi que estava chorando. Tive a sensação que a minha vida foi inútil.”
“Como não aceito a transformação da medicina de sacerdócio em negócio, tomei a decisão de me aposentar. Ia esquecendo, existe uma razão prática, eu não sei dar aulas nem sobre grandes, nem sobre pequenos negócios.”
Belo Horizonte, dezembro de 2018.
Belisário Cruz.
Confesso que fiquei abalado com a mensagem. Fiquei matutando: onde o Dr. Belisário tem razão, e onde ele está exagerando, dominado pela emoção? Essa realidade é geral, ou a faculdade dele é uma exceção? Após quase 60 dias encucado, conclui uma resposta ao colega, dizendo o que eu acho e o que eu não acho. Espero em breve, ter a coragem de torná-la pública.
Antonio Samarone.
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