Memento, homo, quia pulvis es et
in pulverem reverteris...
Siddhartha Mukherjee, autor de
“uma biografia do câncer, chamou a doença de “Imperador de todos os males”. E
acertou! O câncer não é uma, são várias doenças, que tem em comum a
multiplicação descontrolada das células. No fundo, é uma doença do DNA, do
programa genético.
Indiferente ao brilho da
medicina, o câncer avança sobre a humanidade. Segundo a OMS, o câncer é a
segunda principal causa de morte no mundo e é responsável por 9,6 milhões de
mortes em 2018. A nível global, uma em cada seis mortes são relacionadas à
doença. Em breve será a primeira.
O câncer do discurso médico,
chamado eufemisticamente de neoplasia, não é o mesmo sentido pelos pacientes, por
quem sofre com a doença. Culturalmente, em nosso meio, nem o nome da doença
deve ser pronunciado, no máximo sussurrado. Quando se vai dar a notícia,
“fulano está com câncer”, baixa-se o tom da voz, muda-se a expressão facial, e
o fato toma ares de uma condenação.
O nome da doença é usado como
xingamento: fio do canso, canceroso. Da mesma forma que se usava peste, bexiga "cabrunco", gota serena no tempo das doenças pestilenciais. O câncer é visto como
um anuncio de sofrimento e morte. A medicina, pelo menos, pode aliviar a dor e
parte do sofrimento físico. O que não é pouca coisa.
Só que o câncer não é apenas sofrimento
físico. Em nossa sociedade a morte é negada, escondida, vista como uma derrota,
evento para o qual, poucos estão preparados. Mas sempre resta uma esperança,
cada um vislumbra a possibilidade do seu adiamento. A presença da morte causa
grande impacto nas crenças e valores. Uns depositam a esperança na ciência
médica, outros nos poderes de Deus, em milagres, macumbas, força espiritual,
fé, vontade de viver, ou em tudo junto e misturado. Morrer com dignidade é uma
provação.
As terapias médicas, em alguns
casos, têm eficácia; em outros prolongam a sobrevida. Se sabe até que a metade
dos canceres são preveníveis, poderiam ter sido evitados; mas não é disso que
estou falando. Por outro lado, quase como um contrassenso, a mortalidade por
câncer avança no mundo. A minha fala é sobre o estigma da doença, e as suas
consequências emocionais, religiosas, psicológicas, sociais, comportamentais,
afetivas e familiares.
Quando menino, acompanhei a morte
por câncer de uma parente, na Praça de Santa Cruz, em Itabaiana. Ainda se
morria em casa. Lembro-me das interdições (nunca me deixaram vê-la); do
sofrimento, dos gritos de dor, da comoção dos próximos. E do dia em que descansou.
Minha mãe contava uma narrativa
tenebrosa da doença: o câncer é um monstro de muitas pernas, um tipo de
caranguejo, que invade, penetra, e come as carnes das pessoas. Não se consegue
arrancar. É necessário se colocar 3 kg de carne por semana, para aplacar a fome
do bicho. Meio sem entender, eu acreditei em tudo...
O câncer tem os seus segredos. É
uma doença nossa, intima, que não se pega e não se transmite. O que mais comove
é que o nosso organismo resolveu trabalhar contra a gente. Muitas vezes de
repente, de uma hora para outra, sem emitir sinais de descontentamento.
Se morre de todo jeito, sem
chances, mas a morte por câncer é singular. Ela nos dar um tempo, permite um
balanço da vida, reconciliações e arrependimentos. Tem certa semelhança com o
sofrimento bíblico de Jó. A morte por câncer expõe a miséria da condição humana.
Antonio Samarone.
Nenhum comentário:
Postar um comentário