quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris...



Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris...

Siddhartha Mukherjee, autor de “uma biografia do câncer, chamou a doença de “Imperador de todos os males”. E acertou! O câncer não é uma, são várias doenças, que tem em comum a multiplicação descontrolada das células. No fundo, é uma doença do DNA, do programa genético.

Indiferente ao brilho da medicina, o câncer avança sobre a humanidade. Segundo a OMS, o câncer é a segunda principal causa de morte no mundo e é responsável por 9,6 milhões de mortes em 2018. A nível global, uma em cada seis mortes são relacionadas à doença. Em breve será a primeira.

O câncer do discurso médico, chamado eufemisticamente de neoplasia, não é o mesmo sentido pelos pacientes, por quem sofre com a doença. Culturalmente, em nosso meio, nem o nome da doença deve ser pronunciado, no máximo sussurrado. Quando se vai dar a notícia, “fulano está com câncer”, baixa-se o tom da voz, muda-se a expressão facial, e o fato toma ares de uma condenação.

O nome da doença é usado como xingamento: fio do canso, canceroso. Da mesma forma que se usava peste, bexiga "cabrunco", gota serena no tempo das doenças pestilenciais. O câncer é visto como um anuncio de sofrimento e morte. A medicina, pelo menos, pode aliviar a dor e parte do sofrimento físico. O que não é pouca coisa.

Só que o câncer não é apenas sofrimento físico. Em nossa sociedade a morte é negada, escondida, vista como uma derrota, evento para o qual, poucos estão preparados. Mas sempre resta uma esperança, cada um vislumbra a possibilidade do seu adiamento. A presença da morte causa grande impacto nas crenças e valores. Uns depositam a esperança na ciência médica, outros nos poderes de Deus, em milagres, macumbas, força espiritual, fé, vontade de viver, ou em tudo junto e misturado. Morrer com dignidade é uma provação.

As terapias médicas, em alguns casos, têm eficácia; em outros prolongam a sobrevida. Se sabe até que a metade dos canceres são preveníveis, poderiam ter sido evitados; mas não é disso que estou falando. Por outro lado, quase como um contrassenso, a mortalidade por câncer avança no mundo. A minha fala é sobre o estigma da doença, e as suas consequências emocionais, religiosas, psicológicas, sociais, comportamentais, afetivas e familiares.

Quando menino, acompanhei a morte por câncer de uma parente, na Praça de Santa Cruz, em Itabaiana. Ainda se morria em casa. Lembro-me das interdições (nunca me deixaram vê-la); do sofrimento, dos gritos de dor, da comoção dos próximos. E do dia em que descansou.

Minha mãe contava uma narrativa tenebrosa da doença: o câncer é um monstro de muitas pernas, um tipo de caranguejo, que invade, penetra, e come as carnes das pessoas. Não se consegue arrancar. É necessário se colocar 3 kg de carne por semana, para aplacar a fome do bicho. Meio sem entender, eu acreditei em tudo...

O câncer tem os seus segredos. É uma doença nossa, intima, que não se pega e não se transmite. O que mais comove é que o nosso organismo resolveu trabalhar contra a gente. Muitas vezes de repente, de uma hora para outra, sem emitir sinais de descontentamento.

Se morre de todo jeito, sem chances, mas a morte por câncer é singular. Ela nos dar um tempo, permite um balanço da vida, reconciliações e arrependimentos. Tem certa semelhança com o sofrimento bíblico de Jó. A morte por câncer expõe a miséria da condição humana.

Antonio Samarone.

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