sábado, 17 de junho de 2017

UM CONTO DE RANULPHO PRATA

A  MORTE DO COVEIRO– Ranulpho Prata

Em 1920 era dono e senhor do engenho... no norte sergipano, o cavalheiro Tibúrcio Alvares Pascoal, rebento ilustre do nobre cepo dos Alvares, limpa gente que a sacarose afidalgara, vertendo-lhe nas veias não o sangue azul das raças do além, mas as flavas torrentes do ouro líquido.
Excelente fidalguia a que dá o dinheiro! Não há nenhuma outra que a ela se avantaje ou lhe ganhe a primazia; nem a do nascimento, nem a do caráter, nem a do saber.
Justificado é, pois, e sobejamente, que se lhe anteponha ao nome o honorífico “dom”, conforme mandava o velho uso português. Servir-lhe-á até o nobre título para evitar uma provável confusão entre o seu lustroso apelido e outros Tibúrcios plebeus que, por ventura, tivesse mourejado naquelas paragens açucareiras.
Merece D. Tibúrcio uma biografia esclarecida e um tanto ou quanto minuciosa.
Vamos busca-lo nos braços da parteira, numa noite borrascosa do ano de 1880, a dar pinotes e guinchos com um vigor precoce de uma criança taluda. D. Timóteo, o seu venerabundo progenitor, alagado das mirificas venturas paternais, andava pela casa toda a dar sopros jubilosos, enviando portadores, com a feliz nova, a todos os engenhos, que ostentassem nas cancelas os brasões dos Alvares. Natural alegria era aquela: era o filho varão do casal.
O rompimento prematuro dos dentes provocou entre as pessoas da família profecias várias. Futurou-se muita coisa boa: que havia de ser um grande político; o usineiro mais rico da região; famoso homem de letras. Este último bacorejo caiu dos lábios de um tio, usineiro amante dos livros, que escrevia charadas nos jornais de Aracaju.
Infância sadia como aquela poucas se têm conhecido. Não foi atacado o repolhudo menino nem de sarampo, nem de lombrigas e quejandas coisas. Era de uma rigidez de amago de aroeira.
Aos dez anos surpreendeu o pai a dar tapas e morder uma negrinha da casa, que rejeitava as suas carícias de voluptuoso precoce. Fez que não viu e foi andando, dizendo entre si, com disfarçado sorriso:
- Filho de peixe, peixinho é...
Não havia que negar, aquele era seu filho, ali estava no sangue a prova evidente de quem descendia do cepo dos Alvares.
Vinha de longe a herança. Seu ilustre pai, avô de Tiburcinho, fora arcabuzado de tocaia, quando uma noite levava para a sua casa solarenga, na anca de árdego sendeiro, uma mulatinha púbere.... Quanto a ele, Timóteo, nem convinha falar...
Para não ficar de todo cru em matéria de letras foi D. Tibúrcio, aos dezessete anos, para um colégio em Salvador. Era nessa época um arrieiro, por dentro e por fora. Rebelou-se e escabujou contra a infâmia, do pai, em querer afastá-lo do convívio dos carreiros e dos negros cortadores de cana. Seguiu como um preso, vigiado, e com ordens de ser contido a relho.
No colégio ganhou a fama de malandrim e de esbanjador de dinheiro. Jamais dera uma lição, e, constantemente assaltado pelas saudades do engenho, arrepelava-se furiosamente, maldizendo a vida falando em fugir. Veio arrancá-lo do aflitivo viver, três anos depois, uma obstrução estercoral, que lhe matou o pai, repentinamente. D. Tibúrcio deu figas aos bancos escolares e correu pressuroso a tomar conta dos negócios do falecido, ideal que animava desde os doze anos, tempo em que vivia a se espolinhar na bagaceira, junto com os moleques do engenho.
Apossado das terras do pai, administrou-os com tão grande tino e segurança que pasmou a parentela. Achou mais facilidade em vender vantajosamente partidas de açúcar e barris de cachaça, do que reter na memória uma regra de gramática. Nada mais natural. Cada um como Deus o fez. Os parentes, desculpando-lhes a negação pelos livros, elogiaram-lhe a bolsa de usineiro. O moço prometia.
Como é de uso e praxe entre os fidalgos, aos vinte e seis anos, ofereceram-lhe como esposa a sua formosa prima. Dona Branca, menina que, sem nenhum entendimento do mundo, teve que obedecer ao pai, senhor de velho solar açucareiro. Os Alvares só casam entre si. Que nenhum plebeu se arrojasse a amar uma das fidalgas meninas, ou vice-versa. No primeiro caso o petulante pagaria com a vida o grande crime; no segundo a amorosa virgem seria coagida a entregar-se ao primeiro parente que aparecesse.
Dona Branca, mimosa flor de sentimento e candura, ao ver-se nos braços do alapuzado esposo, tremeu de horror, chorou lágrimas de sangue e enovelou-se em sua dor, odiando secretamente ao pai, que a lançou na infelicidade irremediável.
Era uma figura de romance, a dolorida menina. Fina, esguia e cor de lírio, tinha uma doce alma de criança, suavíssima e angelical.
Onze dias depois de casados tiveram este dialogo, motivado por lagrimas que vira D. Tibúrcio espalharem nas amareladas faces da esposa.
- A senhora Dona Branca não é mulher cá para mim, não pega do meu jeito. Errei na escolha. Mas só tenho a queixar-me de mim mesmo e de seu pai.
- Eu o ofendi, senhor? Perguntou a magoada criatura.
- Se me ofendeu? Ora, essa é muito boa! Mais do que isso. Repele-me, parece ter nojo de mim...
- O senhor Tibúrcio está precipitando os seus juízos e sendo injusto comigo, que desejo ser uma boa esposa.
- Qual injusto qual nada! Eu não sou cego e estou enxergando bem como é a coisa. O que a senhora queria era casar com aquele poeta malandro lá de Aracaju.
Não fale desse modo, meu primo, gemeu Dona Branca, angustiada com a lembrança do seu grande amor.
D, Tibúrcio fitou-a, arreganhou os lábios com desprezo e disse tranquilamente: - Para mim é a mesma coisa; tanto faz como tanto fez. Mulheres não me faltam...
Dona Branca caiu-lhe aos pés em postura de mártir e pediu-lhe, afogada em crebros soluços: - Mata-me, Tibúrcio, mata-me pelo amor de Deus.
O mazorral marido, ninguém acredita, riu com naturalidade e falou, virando-lhe as costas: - Deixe de asneira menina. E lançou mais adiante uma eructação, que reascendia a melado com batata doce, sobremesa predileta do fidalgo.
Desde esse dia passaram a viver separados. Cada um possuía os seus aposentos.
Decorriam semanas e semanas sem que se vissem. D. Tibúrcio fazia-lhe a grande esmola de não a procurar, tinha de sobra onde aplacar a freima cupidínea do seu sangue tumultuoso. E não precisava de mulher para mais nada.
Dobraram-se os anos.
Aos quarenta de idade D. Tibúrcio era um sujeito que fugia a toda descrição. Tentemos, porém, bosquejar-lhe a figura. Era de estatura abaixo da mediana, espáduas quadradas, atarracado, solidamente fornido de carnes, gorja de touro e cara adiposa, rechonchuda e nédia de bonzo chinês.  Repuxadas e escassas farripas de cabelos grisalhos vestiam-lhe, como um véu finíssimo, a careca luzente e cor de ferida em cicatrização.
Era bem de vê-lo passear no alpendre da casa, à espera do cavalo para ir à cidade de Maroim, calçado numas botas luzidas que lhe vinham até os joelhos, tinindo esporas de prata, rebenque do mesmo metal preso a mão direita, chapéu panamá desabado, o cadeião segurando o patacho, passado de hipocôndrio a hipocôndrio, sobre o ventre rotundo, laxo e descaído.
Má fez tinha o homem. Era um pote de perversidade e luxuria. Alapava-se naquele arcabouço atoucinhado, uma alma proterva. Contava-se dele coisas de arrepiar. Aos ladrões de cana mandava arrancar os dentes a alicate; cauterizava a língua de quem lhe subtraia uma caneca de mel imundo do tanque; aos caminhantes que descuidadamente deixavam aberta alguma cancela dos pastos, ensinava a fechá-las aplicando-lhe dúzias de bolos; por um nada fincava de roxo, a rebenque, o rosto dos empregados; e, sobretudo, sepultava na desonra quase todas as rapariguinhas que viviam em suas terras malditas. Atiradas para os alcouces das cidades vizinhas, as sacrificadas faziam a vida algum tempo mais e morriam aos vinte e poucos anos, na indigência, apodrentadas, gafadas de moléstias horríveis. E por uma destas felicidades inconcebíveis não teve o seu ilustre avô, de chorada memória, não se cansava de cavar sepulturas D. Tibúrcio. Era um monstruoso coveiro.
Corria farta a safra do ano de 1920.
O engenho... sacudia-se todo numa grande azafama. Refervia de atividades. As quatro horas da manhã as caldeiras já davam pressão, e o apito sonoro chamava braços à labuta.
E durante todo o dia o trabalho não descontinuava. Era um mourejar sem conta. Os carros cogulados de cana cruzavam-se nos caminhos dos canaviais, a cantar estridentemente. A cana alteava-se em grandes rumas no picadeiro, para minguar depois, engolida pelas moendas possantes, que giravam esfomeadas, famélicas, insaciáveis. O maquinismo trepidava, produzindo um ruído uniforme, único, monótono. Os agregados iam e vinham cada um em sua faina. O bagaço úmido e cheiroso era espalhado ao sol, numa área de muitas braças, remoído pelo gado enquanto fresco. As tachas fumegavam borbulhantes, impregnando os ares de um cheiro agradável de açúcar em preparação.
Saindo do vasto telhado surgia e se elevava a chaminé com o penacho de fumo, ondulante, a subir em espirais que se desfaziam no alto, ao sopro da ventania. No meio das pastagens, num gracioso comoro, a casa senhorial. Em torno e ao longe, ondeava o mar verde dos canaviais, que se espraiavam até muito além, a perder de vista.
As seis da tarde era que pejava, apitando de novo, dando lugar a que homens e maquinas ganhassem, com o repouso, renovado alento.
D. Tibúrcio, com espantosa energia, dirigia tudo. Não se arredava uma palha que não fosse com a sua previa ordem. Entrava aqui, espiava acolá, gritava com este, descompunha aquele.
E percorria todas as dependências do serviço, açodado, vezes colérico, vezes gracejador.
Num dos seus giros fiscalizadores viu que a porta do tanque do mel estava aberta. O mel cabaú, produto das impurezas do açúcar, é conservado em tanques de cimento, donde sai para o fabrico da cachaça e outras utilidades diminutas. Esses tanques são espaçosos quartos escurentados, cheirando a bafio e a açúcar em fermentação. Pisa-se sobre tábuas movediças e afastadas uma da outra, que deixam ver no escavado fundo a massa líquida e anegrada, coberta de um cascão que retém na superfície: ratos mortos, baratas, excremento de aves, papeis imundos e outras sujidades.
D. Tibúrcio não contente com o rendimento do seu açúcar cristal e sobretudo do mascavo, também fabricava aguardente, e em grande escala. E era da melhor, diziam a uma só voz os piteireiros que lhe deram justificada fama.
O rei da cachaça quando viu a porta aberta e o seu rico mel exposto aos larápios, franziu a testa contrariado e olhou em torno para ver se topava com quem gritar por causa do desmando. Perto dele só havia um velho boi de carro, já imprestável, a mastigar com delícia um olho de cana. D. Tibúrcio parou, deteve-se por alguns instantes, subiu os cinco degraus, empurrou a porta e entrou. Teve uma magnífica surpresa. Lá dentro estava a Rufina, a arisca Fina, cor de canela, paixão de sua vida, tormento dos seus sentidos exaltados. Havia tempo que o fidalgo andava de frente virada para a rapariga. A princípio pôs em prática o que costumava fazer com as outras: presentes, dinheiro, condescendências aos parentes, regalias.... Fina não cedeu. D. Tibúrcio duplicou os meios. Tentou. Pertentou. Nada. Não esbraveceu nem as expulsou de suas terras. Deixou que os tempos corressem. Aguardava oportunidade. Mais dias menos dias... O que não compreendia era a resistência da parte de uma menina, que não tinha pai nem mãe, e morava em companhia de um irmão borracho, que a tratava a ponta pés e a deixava sofrer de fome. Vivia a danada como um cão sem dono, em casa de um e de outro, a pedir migalhas.
Quando Rufina avistou D. Tibúrcio, tremeu dos pés à cabeça e, instintivamente, coseu-se a parede, de olhos esgazeados, opressa, como se tivesse diante das escancaradas faces de uma onça pintada.
D. Tibúrcio, passado o primeiro momento de surpresa, fechou aporta por dentro e perguntou, caminhando para ela, risonho, com a voz doce como o cabaú, que tinha estagnado aos pés:
- Que faz aqui, menina?
- Nada, não senhor...
- Ora, não minta, você veio roubar mel. Por que não me pediu?
Rufina tornou-se muito pálida e vociferou dentro dos dentes:
- Peste!
D. Tibúrcio, açulado pelo insulto, deu-lhe o primeiro bote. Fina fugiu com o corpo e o homem espapaçou o ventre pilharengo de encontro à parede. Fitou-a raivoso, a despedir pelos olhos áscuas chamejante.
Rufina, tremula e cor de cal, rosnou novamente:
- Esconjurado!
O fidalgo renovou o bote, inutilmente. E, firmando-se nas curtas e roliças pernas, saiu-lhe ao encalço fazendo prodígios de equilíbrio, pulando de uma tábua para a outra, evitando com agilidade simiesca os intervalos perigosos. Ninguém o julgaria capaz de semelhante destreza. Quanto pode o amor!
Rufina encolhia-se espavorida, recuava, dava saltos, fugia-lhe das mãos como uma enguia escorregadia.
O ânimo não fraquejava de D. Tibúrcio. Valoroso até ali! Resfolegante, congesto, com as cordoveias do pescoço intumescidas, a pulsarem como aneurisma, o suor a correr-lhes a bagadas pela cara abaixo, temulento de lascívia, não parava na corrida. E a presa sempre a lhe escapar.
Em dado momento, porém, encantou-a e prendeu-a rigidamente entre as mãos em ganchos. Fina debateu-se com furor, como uma pomba nas garras de um gavião. Mas não se extinguiu dolorosamente entre as mãos assassinas, como sucederia à infeliz pombinha. A bravia menina espalmou a mão, com a violência que lhe dera o desespero, no gorduroso semblante do fidalgo e dele se desatou para longe de si.
D. Tibúrcio vacilou, perdeu o equilíbrio e metendo os pés nos vãos das tábuas mergulhou na massa líquido do mel. Veio à tona negro de cabaú, bufante, a soprar pelas ventas, procurando agarrar-se as vigas que sustentava o tabuado. Rufina saudou a queda do seu inimigo com sonora gargalhada, que iluminou os anoitados ares.
Um santo riria em semelhante conjuntura. O cômico e o trágico andam na vida de braços dados.
D. Tibúrcio submergiu novamente. Reapareceu. Gritou. Debateu-se. O mel espesso e grosso semelhava um atascadeiro. Difíceis eram os movimentos que lhe minguavam as forças. Uma gravidade poderosa chamava-o para o fundo lodoso. Esbracejou em vão. Desapareceu por segundos. Tornou a ressurgir. Escabujou pela última vez e a caretear, arrancou da vida, de entranhas açucaradas, hidrópico de mel...
E o corpo ficou a boiar, medonhamente fúnebre, parecendo uma bola de sebo numa grande terrina de melado.

Fina, com um gozo venenoso no olhar, de feições compostas como se nada tivesse acontecido, abriu a porta, fechou-a pelo lado de fora, atirou a chave sobre o telhado e desapareceu pelo pasto, cantarolando uma cantiga chula...

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