Apontamentos para uma história dos
remédios.
Na primeira metade do século XX,
havia duas maneiras de se produzir medicamentos. Uma artesanal, em pequena
escala, centrada em fitoterápicos, sem a necessidade da intermediação médica
para o consumo; e outra industrial, larga escala, centrada em substâncias
químicas, exigindo a receita médica para o acesso ao consumo. Vamos ao primeiro
modelo.
Pequenas empresas produziam
elixires, xaropes, balsamos, grãos de saúde, fortificantes, peitoral, vinho,
licor. Esses medicamentos só poderiam ser comercializados após a competente
aprovação das Juntas Estaduais de Higiene. Eram pequenas fabriquetas e
acanhados laboratórios, geralmente de propriedade dos inventores das misturas
ali produzidas. Uma produção artesanal, totalmente descentralizada, contudo,
fiscalizado pela Saúde Pública. A rede comercial oferecia desde os medicamentos
produzidos por um farmacêutico famoso da Capital Federal, até os produzidos por
um farmacêutico provinciano, da nossa bela Maruim.
Esses medicamentos
de marca registrada, geralmente fitoterápicos, formulas secretas, de amplo
espectro, que restauravam, tonificavam, fortaleciam, depuravam, reconstituíam,
corrigiam, recompunham, preveniam, curavam, etc.; eram vendidos diretamente aos
consumidores, sem a necessidade da intermediação médica. A sua regulação era
orientada pela Farmacopeia (Coleção das fórmulas de medicamentos básicos).
No Brasil, a primeira foi a
Farmacopeia Geral para o Reino e os Domínios de Portugal, sancionada em 1794, e
obrigatória a partir de 1809. Após a Independência, foram utilizados, além
desta, o Codex Medicamentarius Gallicus francês e o Código Farmacêutico
Lusitano, hoje considerado como a 2ª edição da Farmacopeia Portuguesa. Em
19/01/1882, o Decreto n° 8.387, estabeleceu que para o preparo dos medicamentos
oficiais seguir-se-á a Farmacopeia Francesa, até que fosse composta uma
Farmacopeia Brasileira.
Finalmente, em 1926, as
autoridades sanitárias do País aprovaram a proposta de um Código Farmacêutico
Brasileiro, apresentada pelo farmacêutico e professor de farmácia Rodolpho
Albino Dias da Silva. Este Código foi oficializado em 1929 e tornou-se a
primeira edição da Farmacopeia Brasileira. Obra de um único autor, a primeira
edição da Farmacopeia Brasileira (1.150 páginas), equiparava-se às farmacopeias
dos países tecnologicamente desenvolvidos, com uma diferença, continha a
descrições de mais de 200 plantas medicinais, a maioria delas de origem
brasileira.
Na primeira metade do Século XX,
encontravam-se à venda nas farmácias, boticas e drogarias sergipanas: o peitoral
de cambará, indicado no combate as bronquites e a coqueluche; para o estomago
era aconselhado que se bebesse caxambu, lambary e cambuquira; contra a queda de
cabelo, o tônico de camomila; para o combate os vermes intestinais. Lumbricida
Vegetal; para fortalecer a dentição, os pós calcários naturais, do farmacêutico
Antonio Carvalho, de Maruim.
O balsamo humanitário, aprovado
pela Inspetoria de Higiene, do farmacêutico Durval Freire, era indicado para
reumatismo, inchação, feridas, mordeduras, queimaduras, inflamações do fígado e
baço, bem como para as afecções do peito. Do mesmo profissional tínhamos o vinho
reconstituinte de quinino fosfatado, indicado para fraqueza geral, dispepsia,
anemia, neurastenia, erisipela e caquexia.
Vinho de cássia occidentalis composto,
do farmacêutico Carvalho, indicado contra as febres palustres, o paludismo
crônico, o ingurgitamento do fígado e do baço (vulgarmente dureza), icterícia,
anemias, além de ser um excelente aperitivo.
A matricaria de F. Dutra é
anunciada como medicamento homeopático indicado para fortalecer a dentição das
crianças, tornando-as tranquilas. Evita também as desordens do estômago,
corrige as evacuações, cura a febre, as cólicas, a insônia, previnem os vermes
e tornas as crianças mais fortes, alegres e sadias. Já para as doenças do
estomago, fígado e intestino usava-se os Grãos de Saúde do Dr. Antunes.
Xarope de grindelia, de Oliveira
Junior, indicado para moléstias do peito, defluxo, influenza, enfisema
pulmonar, tosse pertinaz, e catarro nas vias áreas. O elixir nogueira, salsa,
caroba e guáiaco, indicado na cura a sarnas gálicas, tumores gomosos e
reumatismos. Licor de tayuyá, indicado para sífilis, moléstia da pele, impureza
do sangue, eczemas, reumatismo e ingurgitamentos linfático.
Outros medicamentos encontrados
nas farmácias e drogarias sergipanas: água de vichy purgativa; água sulfatada
maravilhosa, restaurador da vista; carne líquida de Valdez; gelol – bálsamo
analgésico e estimulante; gonol, maravilhosa injeção antiblenorrágica; injeção cadet;
Iodureto de potássio quimicamente puro; Licor de bismuto Schacht; Licor de
Laville; pariquina, infalível remédio contra as hepatites agudas e crônicas; pastilhas
anti-sépticas de Jones, para a garganta; Pastilhas peitorais do Dr. Zed;
Pílulas de ocreina Gremy; Piperazina granulada de Midy; p ó
laxativo de Vichy, do Dr. Souligoux. Vinol, o delicioso preparado de fígado de
bacalhau sem óleo.
Xarope anti-artritico de Orlando
Rangel; Xarope de bromureto de stroncio de Laroze; xarope fenicado de Vial; xarope
de thiocol Roche. Elixir estomacal de camomila e caricina – Dória. – Heroico
medicamento que pode ser usado sem nenhum resguardo, indicado para azia e
cólica, fastio, vômitos, indigestões, sonhos, pesadelos, dores de cabeça,
gastralgia, clorose, anemia, etc. Pílulas e Xarope de Blancard. Iodureto de
Ferro inalterável, indicadas no tratamento de anemia, Clorose, tuberculose,
escrófula e papeira. Medicamento francês.
Emulsão de Scott (1902), óleo de
fígado de bacalhau com hipofosfito de cal e soda, de Scott e Bowne, químicos de
Nova York, contra anemia, tísica, raquitismo, enfermidades nervosas, do peito e
pulmão, alterações do sangue e dentições difíceis. Visicatório de Albespeyres, medicamento
francês.
Cápsula Raquin – Copaivato de
sódio. Curam os fluxos agudos ou crônicos. Medicamento francês. Moléstias
Secretas Cápsulas Raquin Únicas cápsulas de glúten de copaíba aprovadas pela
Academia de Medicina de Paris. Como não se abrem no estomago toleram-se sempre
bem e não causam eructação. Empregadas sós ou com a injeção de Raquin curam em
muito pouco tempo as gonorreias mais intensas.
Vamos ao segundo modelo: em
meados do século XX, com o surgimento de novos medicamentos químicos, tendo os
antibióticos como carro chefe, a forma de produção artesanal e descentralizada
sucumbiu. Grandes laboratórios começaram a distribuir na rede varejista os
novos medicamentos químicos, chamados de medicamentos éticos, cuja a venda
começava a ser controlada centralmente. Para o seu consumo, se começava a
exigir a receita médica. Aos poucos, os médicos foram substituindo os
farmacêuticos no controle da venda dos medicamentos. Com a industrialização
desses medicamentos químicos, as doses e combinações farmacológicas foram
padronizadas, medida necessária a essa forma de produção. Os remédios assumem a
forma de mercadoria, estabelecendo-se uma relação de parceria com os médicos,
visando a aceitação dos consumidores desses produtos.
Como esclareceu Robert Whitaker,
em seu conhecido trabalho, a Anatomia de uma Epidemia: “os médicos passaram
então a desfrutar de um lugar muito privilegiado na sociedade norte-americana.
(Também no Brasil). Controlavam o acesso do público aos antibióticos e a outros
novos medicamentos. Em síntese, tinham se tornado os vendedores varejistas
desses produtos, com os farmacêuticos simplesmente cumprindo as suas ordens, e,
na qualidade de vendedores, passaram então a ter uma razão financeira para
alardear as maravilhas dos novos produtos. Quanto maior fosse a percepção dos
remédios, mais o público se inclinaria a procurar os consultórios para obter
receitas. Ao que parece, a posição do próprio médico no mercado é fortemente
influenciada por sua reputação de uso de drogas mais recentes.”
Nesse momento, com a substituição
da produção artesanal de medicamentos, de marca registrada, pela produção
industrializada dos medicamentos éticos, os farmacêuticos que controlavam o
varejo perderam o espaço para os médicos; e os charlatães que disputavam com os
médicos a clientela da assistência são finalmente derrotados, pois deixaram de
ter acesso a prescrição e ao conhecimento sobre os novos remédios. Um novo
saber sobre os medicamentos se constituiu sob a tutela dos médicos, e com a
chancela do discurso científico; tornando os medicamentos artesanais obsoletos.
Os interesses financeiros dos médicos alinharam-se perfeitamente com os da
indústria farmacêutica. No Brasil, esses novos medicamentos só passaram pelo
controle sanitário a partir de 1946. O Decreto nº 20.397/1946 se referia a
medicamentos como especialidade farmacêutica e exigia que toda a especialidade
fosse licenciada antes de ser exposta ao consumo. Era necessário somente
comprovar a segurança do produto. A comprovação da eficácia do produto como
exigência para o registro só a partir de 1976, com a lei 3.360/76. Mesmo assim,
os produtos já licenciados estavam isentos.
No momento, quando a assistência
médica já abandonou a forma de cuidados, assumindo a de produção de
procedimentos, permitindo que a própria assistência incorporasse a forma de
mercadoria; os médicos continuam zelosos na garantia da exclusividade da
prescrição. Muitas prerrogativas foram suprimidas do texto da lei sobre o ato
médico, mas o direito exclusivo de prescrição é inegociável. A disputa do
mercado não é mais com os charlatães, mas com dezenas de profissionais de saúde
não médicos. O poder exclusivo da intermediação do consumo dos produtos da
indústria farmacêutica, e o combate a automedicação, continua sendo uma
garantia de clientela.
Antônio Samarone.
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