quinta-feira, 5 de outubro de 2023

DOUTOR VENÂNCIO


 O Doutor Venâncio.
(por Antonio Samarone)

Venâncio comemorou os 70 anos, sozinho. Enviuvou recentemente. E os filhos? Bem, aí é outra história. A filha é dentista e mora em Portugal, e o filho, Germano, é militante de um grupo nazista, em São Paulo.

Não lembram do pai, nem o pai deles.

Venâncio Nogueira é doutor em filosofia pela USP, onde foi professor. Ao aposentar-se, Venâncio veio morar no Lagamar, terra de Júlia, sua avó materna. Comprou uma casa, num condomínio de luxo, em Itabaiana.

Venâncio envelhece com medo das demências. Não é a morte que nos assusta, são as demências.

Disse-me Venâncio: “Essa conversa que só envelhece quem quer, que idade é uma questão de “cabeça”, não é verdade, é pura embromação da turma da autoajuda.”

Se velhice não existe, políticas sociais de proteção aos idosos são desnecessárias. Basta que cada um pense que ainda é jovem. O Brasil está envelhecendo de forma desorganizada, cada um por si.

A velhice é uma caminhada nas trevas, imprevista, cheia de armadilhas. Venâncio não sabe como enfrentar a decomposição do corpo. Nem eu.

A medicina aponta caminhos tortuosos. Uma disciplina massacrante e a dependência da indústria farmacêutica. Venâncio é bem aposentado, mas os remédios já pesam no orçamento.

Venâncio montou uma estratégia para enfrentar os esquecimentos, cada vez mais frequentes. Os esquecimentos clássicos, para as coisas recentes.

Quando ele se lembra de uma tarefa, realiza de imediato, para não esquecer. Quando acorda, aplica logo a insulina no bucho, antes que esqueça. O problema é que pouco tempo depois, esquece que já tomou, e toma de novo. Um dia ele repetiu a aplicação cinco vezes.

Venâncio operou de catarata e passou a só precisar dos óculos para perto. Virou um aborrecimento. Como precisa botar e tirar os óculos com frequência, ele nunca se lembra onde os deixou.

Perde os óculos mais de vinte vezes por dia. Já pensou em amarrá-los num cordão e prendê-lo ao pescoço. Aquela coisa antiga.

Aos setenta anos, ele já viu quase tudo. Venâncio não suporta os noticiários. As notícias são as mesma, só muda os envolvidos. A bala perdida, as enchentes, as vilanias do poder, a morte de um notável, as guerras, a crise climática. Tudo jornal velho.

Venâncio só escuta as músicas da sua geração. Acha que depois de “Águas de Março” (1974), a MPB deu um retrocesso. Nisso eu concordo. Ele defende que “Águas de Março” é a segunda parte da “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso. Ponto final.

Não sei opinar sobre música, pouco entendo.

Venâncio encerrou a conversas com uma frase de livro: “só o desapego nos salvas das mazelas da velhice.” Sei não, acho isso consolo.

A velhice é pau, é pedra, é caco de vidro, é um corte no pé, é um espinho na mão, é a febre terça, é fundo do poço e o fim do caminho. Plagiando a música.

Mesmo assim, estamos adorando a velhice (Eu e Venâncio). Espero que seja infinita!

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

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