segunda-feira, 18 de setembro de 2023

DA EXCOMUNHÃO À SANTO.

 


Da excomunhão à Santo.
(por Antonio Samarone).

A Expedição Serigy vai à Meca sertaneja. "Minha santa beata Mocinha, eu vim aqui, vir ver o meu Padim..."

Na segunda metade do Século XIX, o Vaticano reagiu ao iluminismo, endureceu as teses do Concílio de Trento e centralizou a doutrina.

O Concilio Vaticano I foi invadido a cavalo por Garibaldi. A Igreja perdeu vastos territórios, com a unificação italiana.

Foi nessa conjuntura, que nasceu nas brenhas do Ceará, em 24 de março de 1844, Cícero Romão Batista, filho de Joaquim Romão, descendente de sergipanos, que ocuparam o Cariri, cem anos antes, e de Dona Quinô.

O pai de Cícero morreu durante a epidemia de cólera, de 1862.

Cícero foi um menino influenciado pelas pregações do Padre Ibiapina. Cícero fez parte da primeira turma do Seminário de Fortaleza. Um seminário voltado para a recém-criada disciplina romana, o chamado ultramontanismo.

Era um freio nos catolicismos populares. A missa foi unificada no credo tridentino.

Cícero ordenou-se padre em 1870, aos 26 anos. Um padre que já nasceu rebelde, convencido da crença sertaneja.

Voltando ao Crato, Cícero teve um sonho com Cristo, que ordenou: Cícero, toma conta dessa gente. A Igreja não destinou a Cícero nenhuma Paróquia.

Somente no Natal de 1871, ele celebrou a sua primeira missa, na capela de Nossa das Dores, no ermo povoado de “Joaseiro”.

E foi ficando no Vilarejo. Mudou-se com a mãe e as irmãs para aquele oco do mundo, com 80 casas e 400 habitantes.

Cícero, com o seu pesado cajado, passou a enfrentar os valentões, os desordeiros e as mulheres perdidas. Qualquer arruaça acabava: “lá vem o padre!” Cícero seguia a doutrina de Ibiapina.

A grande seca de 1877, transformou o Sertão no inferno. A fome foi generalizada. A fúria divina era atribuída aos desregramentos e aos pecados daquela gente.

Em 1880, houve muita chuva, a fome foi reduzida. Em 1884, Cícero, aos 40 anos, concluía a nova Capela de Nossa Senhora das Dores. A sua fama de milagreiro crescia. Os devotos acreditavam que o Padre dormia em pé, visto por muitos.

Cicero enfrentou a fome com rezas, penitencias, romarias e caridade. O padre era um deles. Estimulou os ofícios, e doou terras nas encostas da Serra do Araripe, para os romeiros plantarem.

Ele próprio morava em casa humilde, modos franciscanos, hábito roto e sandálias furadas.

Cícero pregava aos camponeses do Araripe: “não toquem fogo nem na roça nem na catinga, não cacem mais e deixe os bichos viverem. Façam uma cisterna no oitão da casa e cavem um cacimba a cada cem metros.” Juazeiro era uma pequena Canudos.

Juazeiro crescia em torno da fé, com a chegada de romeiros atraídos pela salvação.

Em 1886 ocorreu um milagre. A beata Maria de Araújo, a mãe preta, lavadeira e cozinheira, uma pequena cafuza, coberta pelo véu, sentia o sangue de Cristo sempre que comungava. A beata falava com Jesus Cristo.

A Diocese de Fortaleza reagiu desmentindo. Cícero e os devotos de Juazeiro, não tinha dúvidas do fenômeno.

Essa discórdia colocou Cícero em confronto com o Santo Ofício. Uma longa polêmica. A Igreja proibiu o Padre Cícero de exercer as atividades eclesiais. Como era de se esperar, Juazeiro ficou ao lado do Padim. A verdade é filha do tempo.

O Santo Ofício não aceitou uma Santa, negra, pobre, uma beata do fim do mundo. A inquisição puniu o Padre Cícero, pelo milagre da beata Maria de Araújo. “A inquisição não falhou na condenação de Galileu? Pode também estar falhando agora”, disse Cícero. Isso irritou muito a igreja.

O dogma de que “Extra ecclesian nulla salus” (fora da igreja não há salvação) foi desmentido. Juazeiro continuou crescendo, movido pela fé no Padre Cícero. Se ele não podia mais batizar como padre, Cícero virou o padrinho de quase todas as crianças. Padim Ciço não era apelido.

No ano da derrota de Canudos, a Troia de taipa, Cícero estava exilado em Salgueiro, expulso de Juazeiro pela Igreja.

Conta-se que Cícero mandou um portador a Canudos. Conselheiro mandou um recado: “Conte a Cícero o que viu. Ainda vai haver três fogos. Ele também terá o seu foguinho.” O ano de 1897 foi o da derrota de Conselheiro e da excomunhão de Cícero.

Somente em 1908, Cícero com 64 anos, ele começou a se meter em política, com dois objetivos: emancipar o seu Juazeiro e torná-lo sede do novo bispado, que estava para ser criado no Ceará.

Foi nesse momento que o médico baiano, rábula e garimpeiro, Floro Bartolomeu chegou ao Juazeiro.

Cícero encontrou um parceiro audaz e competente. Cícero convocou o povo para a Guerra. Se tornou o primeiro Prefeito do Juazeiro emancipado, vice-governador, chefe político do Cariri (16 municípios). Juazeiro foi emancipado em 22 de julho de 1911.

O Padim Ciço, um cabeçudo de 1,60 metros, meio torto de um lado, virou chefe político somente aos 67 anos, com um lema: “Quem bebeu não bebe mais, quem matou não mata mais, quem roubou não rouba mais. Estão todos perdoados.” Acabou-se o tempo em que o lobisomem corria solto no Sertão.

Em 1913, o Governo do Ceará mandou uma tropa de mil homens para invadir o Juazeiro, era preciso tocar fogo covil. Floro Bartolomeu buscou ajuda com Pinheiro Machado, no Rio de janeiro.

A guerra estava declarada. Fundou-se uma Assembleia Legislativa dissidente no Juazeiro.

Nessa guerra, 1914, os beatos do Padre Cícero foram comandados por Antonio Vilanova, um guerreiro já idoso, sobrevivente de Canudos, que não poderia negar um chamado do Padim. Um grande fosso de nove km de extensão, oito metros de largura e cinco de profundidade foi cavado em torno de Juazeiro, em seis dias. O Padre chamou de “Círculo da Mãe de Deus.”

Cícero pregava: “quem for para a guerra confesse os pecados a Deus. Pois se morrer pelas balas dos soldados, pode ter a certeza de que vai para o céu.” Durante o combate, Cícero jejuava de joelhos aos pés do crucifixo, ouvindo os tiros.

O Padre Cícero ganhou a guerra!

O comandante das tropas do Governo reuniu o que restou, e bradou: “Deus é grande. O padre Cícero é maior. Embrenhem-se no mato, que é maior que os dois.”

Floro, que comandou a defesa, decidiu: não vamos cometer o erro de Conselheiro, vamos para o ataque e invadir o Crato. O padre Cícero fez o sinal da cruz.

Por meu Padim, vou até para o inferno, gritavam beatos, jagunços e cangaceiros. O governo estadual pediu apoio a União. Hermes da Fonseca mandou um telegrama: “Eu sou neutro, a favor do Padre Cícero.”

Depois do Crato derrotados, as tropas do Padre partiram para Barbalha, que foi devastada. A meta passou a ser invadir Fortaleza. Depois da invasão, o Governo Federal decretou intervenção no Ceará.

Foi a glória militar do Padre Cícero. 450 jagunços, escolhidos a dedo por Floro, passariam a fazer parte da Força Pública do Ceará.

O Vaticano criou o bispado no Crato, uma derrota do Padre Cícero. Em 1916, a inquisição condenou Cícero a excomunhão.

No final, em 1917, Cícero submeteu-se a igreja e condenou até as romarias, com a condição de voltar a celebrar missas na Igreja Nossa Senhora das Dores.

Em 1918, Cícero, tido como muito rico, deixou todos os seus bens para a Santa Sé.

Em 1926, Floro organizou uma batalhão patriótico, de jagunços, para combater a Coluna Prestes. Convidou Lampião, com a promessa de muito dinheiro e a patente de capitão do Exército brasileiro. Mesmo desconfiado, Lampião não podia rejeitar um convite assinado pelo Padre Cícero.

Lampião foi ao Juazeiro e conversou com Padre Cícero. Depois, Glauber Rocha imortalizou num filme famoso: “Deus e o Diabo na Terra do Sol.”

Lampião, a partir dessa data, passou a se intitular de Capitão Virgulino.

Com a morte de Floro, carcomido pela sífilis, o velho Padre Cícero (82 anos), quase cego, resolveu se candidatar ao Congresso Nacional. Eleito por quase a unanimidade. Entretanto, nunca compareceu a uma sessão, não foi nem buscar o diploma de deputado.

Após muito sofrimento, cego, em 20 de julho de 1934, com 90 anos, faleceu o Padre Cícero Romão Batista.

A Expedição Serigy está indo a Meca sertaneja, no início de outubro. Uns para reconhecer a santidade do Padim Cíço e da beata Maria de Araújo.

Muitos vão se arrepender dos pecados e pagar promessas.

Outros vão apenas passear, tomar banhos nas águas milagrosas de Barbalha, visitar Exu e Expedito Celeiro, em Nova Olinda.

No meu caso é uma despedida.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

Um comentário:

  1. Professor, parabéns. Gosto como escreve, mas nesse assunto, como entrou o Conselheiro nessa história?

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