Itabaiana – 350 anos. Lata d’água na cabeça.
(por Antônio Samarone)
A água foi escassa desde as origens. A transferência do Arraial de Santo Antonio e Almas de Itabaiana, do vale fértil do Jacarecica, para a árida Caatinga de Ayres da Rocha Peixoto, foi uma decisão para só para beneficiar o padre de São Cristóvão, que queria vender uma propriedade.
A Irmandade das Almas comprou o sítio, transferiram a Arraial e o povo acompanhou Santo Antonio Fujão. As consequências, só foram atenuadas com a chegada da água encanada (1963).
Antes, os ricos construíam cisternas, para garantir a sua água. Os remediados comprovam aos carregadores, e os pobres se largavam em busca das águas barrentas dos tanques e açudes. Tanque do Povo, no centro; Tanquinho, Santa Cruz, Aloque, Açudes Velho, Novo e do Matadouro, na periferia.
Diariamente, o Beco Novo se acordava alvoroçado, uma procissão de gente em direção ao Tanquinho, em busca de água, para se fazer o café e lavar o rosto. Banho, banho mesmo, era uma fidalguia. Só os banhos de sopapo ou de cuia.
Os meninos do Beco Novo dormiam sujos! Mamãe só exigia que esfregássemos os pés molhados numa pedra, para tirar o lodo grosso, e não sujar o lençol.
Nem os meninos escapavam dessa via-sacra em busca de água.
Quando eu passava na esquina do Beco do Ouvidor, gritava: Dona Mãezinha, não vai mandar os meninos buscar água? Ela já se levantava com cipó na mão: acorda preguiçosos, o filho de comadre Lourdes já fez três viagens ao Tanquinho. Eu saia rindo da perversidade.
Entre os carregadores de água, que abasteciam a cidade, com quatro latas no lombo dos jegues, duas de cada lado, e que viviam disso, lembro-me de Seu Carbureto, um senhor baixinho, pés descalços, calças arregaçadas e sempre avexado.
Ele enchia a caixa d’água do Bar Brasília e dos ricos da Praça. Uma lata d’água de beber, de Seu Carbureto, custava uma pequena fortuna.
Que fim levaram os filhos de Seu Carbureto, são vivos?
Sei que é quase impossível uma pessoa que sempre teve água na torneira imaginar o que estou contando. No dia em que chegou água em Itabaiana, ficamos acordados esperando os primeiros pingos na torneira. A maioria era incrédula: não vai chegar!
O milagre: por volta das 9 horas da manhã, surgiu o boato: na Rua da Vitória já chegou. Eu sair desembalado na carreira para ser o primeiro a ver novidade, na casa de Rosália de Antonio de Genoveva. E era verdade! Uma aguinha fraca, chilreando.
Passavam-se horas, para se encher um pote. Mas a água chegou. Acabou o castigo!
Aquele resenha acabou. O caminho dos tanques era uma festa. O caboclo “Vai oiando coisa a grané/ Coisas qui, pra mode vê/ O cristão tem que andá a pé.” – Gonzaga.
Como já tínhamos água da Ribeira, dentro de casa, entupiram-se os tanques para se fazer casa. Eita povo sem juízo. Aterraram a Santa Cruz, ali perto do cabaré de Laura; o Tanque do Povo para se construir um mercado. Taparam tudo. Não sobrou nem a memória.
Tem as lembranças negativas. Conta-se que o finado Euclides, chefe político da UDN, mandou prender Seu Vital da Lapa, pequeno comerciante, um homem de bem, só porque ele era do PSD.
Nessa prisão arbitrária a tortura correu solta: além de apagarem um charuto no rosto de Seu Vital, ele foi obrigado a encher a caixa d’água da cadeia com uma lata furada, indo buscar no Tanque do Povo.
Não sei se o fato é comprovado pelos historiadores; mas todo mundo em Itabaiana daqueles tempos sabia dessa estória. Eu se fechasse os olhos via Seu Vital todo molhado, com a lata furada na cabeça.
A chegada da água da Ribeira, trouxe novidades hídricas: as primeiras piscinas em Itabaiana. O banho de rio e a rede de dormir são as principais heranças lúdicas deixada pelos Tupinambá. A piscina é um luxo. Álvaro de Antonio Agostinho construiu a primeira piscina, em sua chácara. Foi um espanto.
No dia da inauguração, a cidade parou, todos queriam ver novidade. Uma procissão desceu a estrada dos eucaliptos, em direção à casa de seu Álvaro. Ocorre que a piscina era particular, só cabia os convidados.
Ainda acho um desperdício de água, encher uma piscina.
Nesse tempo, a Associação Atlética e o Aruana Clube instalaram piscinas para os sócios. As manhãs dos domingos ficaram movimentadas. Essas não chegavam para o meu bico.
A história não acabou: pobre também é filho de Deus. Um comerciante de tecidos, Abércio de Basto, resolveu fazer uma barragem em sua propriedade na fronteira do Malhador (foto). Estava criada a “Piscina de Abércio”. Foi uma farra no Beco Novo.
Era o nosso Parque Aquático.
Aos domingos e feriados, um magote de meninos saia do Beco Novo, em caravana, para a Piscina de Abércio. Quem tinha, ia de bicicleta; quem não tinha, ia a pé. Duas léguas tiranas.
Essa semana, fui visitar o local da piscina de Abércio. Um buraco dentro do mato, era o nosso encanto juvenil. Só a mangueira e a memória sobreviveram.
Antonio Samarone – Secretário de Cultura.
Mais um conto, literalmente memorável!
ResponderExcluirPalmas.