Medicina Comercial.
Antonio Samarone de Santana
Academia Sergipana de Medicina
Para onde está voltada a
medicina, a que interesses obedece, a quem serve prioritariamente? Uma resposta
romântica, e que agradaria ao senso comum e a autoimagem da corporação, é que a
medicina está voltada e atende aos interesses dos pacientes, visando aliviar a sua
dor e o seu sofrimento. A medicina artesanal da primeira metade do século XX
era a face institucional dessa pretensão. Contudo, a realidade é outra, um
pouco mais complexa. Foucault enxergou uma medicina de Estado na Alemanha
prussiana; identificou uma medicina voltada para o espaço urbano, na França do
Dezenove, e uma outra medicina, focada na força de trabalho, na Inglaterra da
revolução industrial. O padre austríaco Ivan Ilich, chamou a atenção do mundo,
identificando uma face iatrogênica na medicina oficial, em seu famoso livro “Nemesis
da Medicina”.
A partir do final do século XX, a
medicina incorporou-se ao mercado, tornando-se uma atividade de peso na
acumulação capitalista, representando 10,2% do PIB brasileiro. O cuidado médico
assumiu a forma de mercadoria, sob o disfarce de procedimento. O trabalho
médico sofreu intensa taylorização, fragmentando-se, e a medicina subordinou-se
majoritariamente a lógica do lucro, numa medicina comercial. Quais são as
mudanças implantadas pela medicina comercial, e quais as possíveis formas de resistência
e superação é a discussão que me interessa.
Não foi pacífico a assunção ao
mercado dos serviços de saúde, a venda da força de trabalho via o assalariamento
nunca foi bem vista pelos médicos; eles desejavam continuar vendendo os
produtos do trabalho diretamente aos pacientes, como na fase liberal. Esse
produto era o cuidado médico, muito pessoal, subjetivo, impossível de ser
contabilizado numa economia de mercado. Os novos compradores precisaram de um
produto padronizado, mensurável, impessoal como qualquer mercadoria, e os
cuidados médicos tinham subjetividades em excesso. Médicos e mercado entraram
num acordo e o cuidado foi fragmentado em 4.600 procedimentos e, à imagem e
semelhança do trabalho fabril, criou-se uma linha de desmontagem do corpo
humano, descoordenada, e comandado pela avidez do lucro, normal em qualquer
processo de acumulação.
Os empregos dos médicos no Brasil
concentrados nos serviços públicos, mas em harmonia com o sistema mercantil da
compra de procedimentos. É frequente, mesmo nas instalações dos serviços
públicos, o Sistema Único de Saúde (SUS) compre procedimentos, realizando uma
remuneração mista, vencimentos mais pagamentos pelos procedimentos realizados.
As combinações são inúmeras, raramente se constituindo a remuneração por
salários, na renda exclusiva da força de trabalho.
A tendência é o capital ir
retirando o comando dos serviços de saúde dos médicos, reduzindo a sua
autonomia frente aos consumidores (“pacientes”), e padronizando a sua conduta
através dos protocolos. Da mesma forma que os arquitetos e os engenheiros não
possuem o poder de condução na indústria da construção civil; os médicos
caminham velozmente para essa perda de poder no complexo financeiro industrial
dos serviços de saúde.
Com o fim da ditadura militar no
Brasil e as profundas mudanças no capitalismo mundial no início da década de
1980; viveu-se no Brasil uma grande incerteza no campo da saúde; politicamente,
a conjuntura favoreceu a vitória parcial de uma reforma sanitária numa linha
das políticas sociais à moda da social democracia europeia e um pouco dos
sistemas estatais de saúde dos países socialista, surgindo o Sistema Único de
Saúde (SUS). Um serviço público, universal e gratuito; em direção contrária ao
novo capitalismo em ascensão, conhecido popularmente como neoliberalismo, que
pregava o estado mínimo, e políticas sociais compensatórias; destinadas
exclusivamente aos excluídos do mercado.
O surgimento do SUS, foi um
impulso majoritariamente ideológico, conduzido por uma elite pensante do
movimento sanitário, quase todos de esquerda, mas que saiu rapidamente dos
trilhos sonhados na 8ª Conferência. No momento, a política pública de saúde no
Brasil, caminha para a consolidação da alternativa neoliberal de “política
compensatória”, sendo o “mais médico” o seu carro chefe.
A medicina comercial apresenta-se
como um benefício para os consumidores, pela eficácia dos seus procedimentos,
pela prontidão da oferta, pela possibilidade da livre escolha, tornando-se uma
segurança para uma clientela crescentemente envelhecida, portanto, consumidora
compulsória das referidas mercadorias. Numa realidade hedonista, onde a
felicidade foi erigida a condição de direito, alcançado pelo consumo; a saúde e
a juventude uma obrigação e o sofrimento tornou-se quase um desleixo ou
exceção. O caminho para a saúde passou a ser o consumo de serviços e
procedimentos de saúde. Saímos de uma determinação mágico religiosa da saúde
para a de consumo de procedimentos médicos. A saúde, cidadania e qualidade
de vida estão fora da lógica do lucro da medicina comercial. Esta foi a maior
derrota da reforma sanitária brasileira.
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