sexta-feira, 4 de março de 2022

A CONDIÇÃO HUMANA.


 

A Condição Humana.
(por Antonio Samarone)
Conheço Rafael há meio século. Ele sempre foi meio avoado. A coisa se agravou. Em tom de extrema preocupação ele me revelou uma novidade:

“Samarone, o meu corpo deixou de me obedecer. Ele nunca foi muito disciplinado, mas está exagerando. Sinto que ele apressou sua decomposição, o seu desejo de retornar ao pó foi intensificado. Começou a doer generalizadamente e perder a mobilidade.”

“O mais grave, estou me dissociando do meu corpo! Sinto-me bem, memória intacta, cheio de projetos e sonhos, mas o meu corpo rompeu a parceria. Logo agora, que o envelhecimento me trouxe prudência e juízo, o corpo está apressando a finitude.”

“O que você acha, devo procurar um psiquiatra?”

Não!

A psiquiatria de mercado tenta resolver o mal-estar pelo doping, com drogas legalizadas. A medicina cuida do corpo. É a opção necessária para transformar os cuidados médicos em mercadoria.

O que você está percebendo, meu amigo Rafael, é a essência da natureza humana. Essa duplicidade entre um corpo material, físico, símiesco, que marcha de forma inevitável para a morte e um Eu simbólico, com infinitas possibilidades, cheio de sonhos sublimados, que é regido pelo princípio do prazer e a busca da felicidade.

Esse Eu (self) é a autoconsciência que recebe várias denominações. O grande Freud elevou a compreensão dessa consciência as esferas científicas do inconsciente.

O livre arbítrio do Eu simbólico, a sua subjetividade, a pretensão a divindade é objeto da metafísica. Para cuidar das angústias, das manias e melancolias, a medicina valia-se da arte. A ciência cuida do corpo.

Os sábios da medicina aconselham que deixemos o corpo seguir o seu destino biológico, com o envelhecimento. Se o corpo ainda não estiver tomado por uma grande patologia, a pessoa escolhe o tempo da morte. É o nirvana dos monges orientais.

Rafael ainda filosofou: “a loucura da velhice é a obsessão em salvar o corpo, adiar a sua finitude e batalhar com a morte. A derrota é certa e dolorosa, um culto ao sofrimento.”

Chega um momento que o corpo perde a autonomia e precisa de cuidados alheios. Alguém para limpar as fraldas. Acho que as demências são recursos para se abandonar o corpo sem o sentimento de culpa.

Rafael, não brigue com o seu corpo! Quando for possível, atenda às suas reivindicações. Se ele quiser descansar, descanse, se quiser movimento, leve-o para passear, tomar banho de mar, fazer trilha. Se o seu corpo quiser dormir, durma, se ele quiser ficar acordado, não force a barra com remédios.

O nosso corpo foi viciado em remédios. Não o atenda, ele se acostuma.

“Samarone, eu não estou entendendo direito o que você está me dizendo, mas concordo."

"A minha loucura é um caminho para a liberdade?” Não sei se é um caminho, pois não existem saídas. Pelo menos, é uma sublimação para esperar a morte sem angustias..

Não precisa entender nada. Siga a sua vida.

Viva Rafael!

Antonio Samarone (médico sanitarista)

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