Minha infância (2)
Me criei no Beco Novo, numa
casa defronte a sapataria de Justino Mathias Sotero, o Seu Justino. Hábeis
artesões do couro, produziam sapatos por encomenda. Os ricos e remediados iam
botar o pé na forma, e os sapatos eram feitos para cada pé. Os pobres se
viravam com os chinelos de solado de lona de pneu de caminhão. Os bons eram os produzidos
por Mestre Dé ou Seu Bahia, costurados a mão, com uma sovela. Assim como se
tirava a medida para roupas, os homens nos alfaiates e a mulheres nas modistas,
se tirava a forma e tamanho do pé para o sapato. Depois virou manufatura, passaram
a usar formas padronizadas, e Seu Justino levava nos caixões para vender nas
feiras livres.
Seu Justino era bem de
vida, morava em casa própria onde tinha até radiola. Um homem calado, de olhar
grave, crente e músico da banda. Casado com Dona Maria da Conceição Mathias, a
Dona Mãezinha, cabocla de têmpera especial, destemida, de língua afiada, que
criou os filhos numa disciplina espartana. Na hora de irmos pegar água nos
tanques para abastecermos nossas casas, os primeiros a acordar eram os filhos
de Dona Mãezinha. Qualquer traquinagem dos meninos, o couro comia. Usava um
critério bíblico para os castigar os filhos: enquanto Deus me der força no
braço é porque as pancadas são justas, bradava ela. A família era numerosa,
três mulheres, Iracema, Nilza e Josefina (Finha); e oito homens, Messias, Everaldo
(Peba), Tonhinho, Gilberto, Américo (Meco), Dedé, Dandinho e Raimundinho.
Dona Mãezinha tinha
explicação para tudo. Guerreira decidida, que costumava dizer: - comigo é nove,
e dez não ganha. Líder a quem todos ouviam e respeitava. Uma polêmica
provinciana, quase bizantina, surgiu no Beco Novo: qual seria a dor do parto, a
dor de se ter uma criança? As opiniões eram divergentes. Os homens, como
sempre, minimizavam, que nada, a dor era besteira, arrancar um dente doía mais.
As mulheres diziam horrores. Na dúvida, a quem recorrer? Lembraram logo de Dona
Mãezinha, que já tinha parido onze, ela devia saber a dor exata. Chamada a
opinar, Dona Mãezinha não se acanhou: - gente, a dor de parir é a mesma dor de
cagar uma jaca. Todos pararam para pensar no tamanho da jaca e a polêmica foi
resolvida com a sábia sentença.
De uma hora para outra a
rua foi surpreendida com uma notícia: a família de Dona Mãezinha ia embora para
o Rio de Janeiro. Seu Justino quebrou. Na época eu não entendi, como quebrou,
sapataria forte, ele mesmo fabricava e vendia os sapatos, os filhos todos
trabalhando, e não eram poucos, quase todos bons sapateiros. Ninguém entendia
como, mas quebrou. Acharam que tinha sido feitiço. Depois entendi, Seu Justino
quebrou porque não teve como competir com a chegada dos sapatos de fábrica, que
chegavam prontos pela metade do preço. O capitalismo chegava em Itabaiana por
volta de 1965, com a roupa feita, acabando com os alfaiates; a sandália
japonesa acabando os chinelos de Mestre Dé; e os sapatos feitos, cheios de
papelão, acabando com a vida de Seu Justino. Depois chegaram os sapatos de
plásticos, colocando uma pá de cal na manufatura.
Muito tempo depois (1980)
fui estudar no Rio de Janeiro e procurei saber sobre a família de Seu Justino.
Por onde andavam os meus amigos, quase irmãos, vizinhos, parceiros das
molecagens de infância. Encontrei um dos filhos de Dona Mãezinha, Everaldo (o
Peba), meu primeiro amigo, trabalhando no comércio no centro do Rio e estudando
pela noite. Fiquei sabendo que moravam em Queimados, à época distrito de Nova
Iguaçu, na Baixada Fluminense. Marcamos para um domingo, e lá vou eu para a
Central do Brasil em busca de minhas memórias. Chegando à Queimados a família
tinha acabado, perdeu as raízes. Restava um bando de gente triste, nem Dona
Mãezinha era a mesma. A mulher forte que rivalizava com mamãe, eram muito
amigas, tinha ficado em Itabaiana...
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