quarta-feira, 5 de abril de 2017

MINHA INFÂNCIA (2)

Minha infância (2)

Me criei no Beco Novo, numa casa defronte a sapataria de Justino Mathias Sotero, o Seu Justino. Hábeis artesões do couro, produziam sapatos por encomenda. Os ricos e remediados iam botar o pé na forma, e os sapatos eram feitos para cada pé. Os pobres se viravam com os chinelos de solado de lona de pneu de caminhão. Os bons eram os produzidos por Mestre Dé ou Seu Bahia, costurados a mão, com uma sovela. Assim como se tirava a medida para roupas, os homens nos alfaiates e a mulheres nas modistas, se tirava a forma e tamanho do pé para o sapato. Depois virou manufatura, passaram a usar formas padronizadas, e Seu Justino levava nos caixões para vender nas feiras livres.

Seu Justino era bem de vida, morava em casa própria onde tinha até radiola. Um homem calado, de olhar grave, crente e músico da banda. Casado com Dona Maria da Conceição Mathias, a Dona Mãezinha, cabocla de têmpera especial, destemida, de língua afiada, que criou os filhos numa disciplina espartana. Na hora de irmos pegar água nos tanques para abastecermos nossas casas, os primeiros a acordar eram os filhos de Dona Mãezinha. Qualquer traquinagem dos meninos, o couro comia. Usava um critério bíblico para os castigar os filhos: enquanto Deus me der força no braço é porque as pancadas são justas, bradava ela. A família era numerosa, três mulheres, Iracema, Nilza e Josefina (Finha); e oito homens, Messias, Everaldo (Peba), Tonhinho, Gilberto, Américo (Meco), Dedé, Dandinho e Raimundinho.

Dona Mãezinha tinha explicação para tudo. Guerreira decidida, que costumava dizer: - comigo é nove, e dez não ganha. Líder a quem todos ouviam e respeitava. Uma polêmica provinciana, quase bizantina, surgiu no Beco Novo: qual seria a dor do parto, a dor de se ter uma criança? As opiniões eram divergentes. Os homens, como sempre, minimizavam, que nada, a dor era besteira, arrancar um dente doía mais. As mulheres diziam horrores. Na dúvida, a quem recorrer? Lembraram logo de Dona Mãezinha, que já tinha parido onze, ela devia saber a dor exata. Chamada a opinar, Dona Mãezinha não se acanhou: - gente, a dor de parir é a mesma dor de cagar uma jaca. Todos pararam para pensar no tamanho da jaca e a polêmica foi resolvida com a sábia sentença.

De uma hora para outra a rua foi surpreendida com uma notícia: a família de Dona Mãezinha ia embora para o Rio de Janeiro. Seu Justino quebrou. Na época eu não entendi, como quebrou, sapataria forte, ele mesmo fabricava e vendia os sapatos, os filhos todos trabalhando, e não eram poucos, quase todos bons sapateiros. Ninguém entendia como, mas quebrou. Acharam que tinha sido feitiço. Depois entendi, Seu Justino quebrou porque não teve como competir com a chegada dos sapatos de fábrica, que chegavam prontos pela metade do preço. O capitalismo chegava em Itabaiana por volta de 1965, com a roupa feita, acabando com os alfaiates; a sandália japonesa acabando os chinelos de Mestre Dé; e os sapatos feitos, cheios de papelão, acabando com a vida de Seu Justino. Depois chegaram os sapatos de plásticos, colocando uma pá de cal na manufatura.


Muito tempo depois (1980) fui estudar no Rio de Janeiro e procurei saber sobre a família de Seu Justino. Por onde andavam os meus amigos, quase irmãos, vizinhos, parceiros das molecagens de infância. Encontrei um dos filhos de Dona Mãezinha, Everaldo (o Peba), meu primeiro amigo, trabalhando no comércio no centro do Rio e estudando pela noite. Fiquei sabendo que moravam em Queimados, à época distrito de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Marcamos para um domingo, e lá vou eu para a Central do Brasil em busca de minhas memórias. Chegando à Queimados a família tinha acabado, perdeu as raízes. Restava um bando de gente triste, nem Dona Mãezinha era a mesma. A mulher forte que rivalizava com mamãe, eram muito amigas, tinha ficado em Itabaiana...   

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