terça-feira, 4 de abril de 2017

MINHA INFÂNCIA (1)


Minha infância (I).


Acho que me assuntei como gente aos sete anos. Nunca soube os motivos, mas mamãe fez uma promessa para me batizar nesse dia. Caiu numa segunda-feira, igreja esvaziada, mas a promessa foi cumprida. As sete da manhã, o primogênito de Dona Lourdes e Seu Elpídio estava pronto, na primeira fila de bancos da matriz de Santo Antônio e Almas de Itabaiana, para ser batizado. Foi a primeira vez que vesti uma calça comprida e calcei sapatos. Fui empurrado para dentro da Igreja. Depois fui tirar retrato nos estúdios de Joãozinho Retratista, nos fundos de uma relojoaria. As cerimonias da igreja ainda eram em latim, o padre celebrava de costa para os fiéis e os santos faziam milagres. A cheirosa fumaça dos turíbulos é a minha melhor lembrança.

Itabaiana transpirava a contra-reforma e as resoluções do Concílio de Trento (1554 – 1563) eram fielmente observadas. A vida econômica tinha base rural. Na cidade só pequenos artesões (sapateiros, marceneiros e alfaiates), donos de bodegas, funcionários públicos e desocupados. Metade dos imóveis da cidade era “casa de rancho”. Tudo girava em torno da igreja católica: festas, procissões, batizados e casamentos. No natal a missa do galo era cheia. No sábado de aleluia, rasgar as coberturas roxas dos santos era um acontecimento esperado com ansiedade. A missa de aleluia transcorria com as luzes apagadas, e me disseram que se o padre não encontrasse uma certa passagem no missal, era o prenuncio do fim do mundo. Nunca entendi os motivos para se procurar essa passagem no escuro, nem porque sendo tão importante, não procuravam antes e já deixavam marcado.

As modernices do Concilio Vaticano II (dezembro de 1965) só apareceram quando eu já tinha onze anos. E não pensem que chegou em Itabaiana no outro dia. Essa estória de que Deus é amor e perdoa todo mundo demorou a entrar na cabeça do povo. As Santas Missões apontavam a eminência do fogo eterno, e os nossos frades pregavam a paz para os justos, a misericórdia para os aflitos e o fogo eterno para os ímpios. O castigo para os maus seria severo. Era esse medo que continha o rebanho.
A igreja católica era soberana. Os crentes limitavam-se aos membros da igreja de Dona Eulina Nunes, poucos, mas descentes e respeitados. As religiões africanas estavam a cargo de dois ou três macumbeiros amadores de final de semana. Os terreiros de João de Filipinho, Cidália e Hosana, onde se batia o tambor e bebia-se cachaça. Eu achava tudo meio misterioso. Lá em casa meu pai se pelava de medo de mãe Bilina, yalorichá do Terreiro Santa Bárbara Virgem, em Laranjeiras, onde ele vendia rede de dormir na feira. Andava com os bolsos cheios de pregos, para evitar coisas feitas.

Fui guiado pelo Concilio de Trento, pelas aulas de catecismo de minha mãe, filha de Maria. Aprendi a ler com os livros de cordéis de meu avô Totonho de Bernadinho. Já cheguei na escola taludo, e não compreendi a sua serventia. Da escola só prestava a merenda (um achocolatado quente com bolacha) e o recreio. Ler eu já sabia. Se naquele tempo já tivessem inventado o “bullying” eu tinha me lascado. Fui aluno gratuito na escola do Padre, fizeram essa concessão aos filhos dos sócios do “Círculo Operário”, uma organização da igreja para combater o comunismo. A discriminação era total, até carregar água para molhar uma quadra de areia eu carreguei. O Padre Everaldo (bode cheiroso), não perdia a oportunidade de passar em minha cara que eu não pagava. Pensam que tive um trauma psicológico? Porra nenhuma, passei para a ofensiva e quando tinha oportunidade mandava todos eles tomar no (...). A vida não seria um passeio, e fiquei sabendo muito cedo. Aprendi a entrar em bolas divididas.

Eu só tinha medo dos castigos de Deus. Rezei muito nos últimos dias do longo padecimento do Papa João XXIII, morto em junho de 1963, com um câncer de estômago. Eu tinha nove anos, mas acompanhei como adulto. Os sinos da Matriz de Santo Antônio tocavam sem parar uma sinfonia fúnebre. Eu morava no Beco Novo, no fundo da igreja, e achava que os sinos estavam dentro de minha casa.


Logo cedo minha mãe decidiu que eu deveria ser padre. Ter um filho padre era um sonho das camponesas pobres de minha aldeia. Eu não resistia à ideia por oportunismo, achava que seria o único jeito de estudar. Depois abandonaria o sacerdócio, como tantos. A obstinação de minha mãe levou-a a procurar um seminário para me internar, e escolheu o da cidade de Carpina, Pernambuco. Tudo certo, na semana do embarque chegou a lista das coisas que eu precisaria levar, o enxoval. Entre as esquisitices constava 25 guardanapos. Aí minha mãe entrou em pânico: que diabo é guardanapo? Nem ela, nem ninguém lá em casa fazia a menor ideia do que fosse guardanapo. Mamãe apelou para os vizinhos, nada, ninguém no Beco Novo sabia. Foi o fim de minha carreira eclesiástica. Para não passar vergonha quando eu chegasse no seminário sem os tais guardanapos, ela resolveu não me mandar. Escapei por pouco... 

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