sábado, 12 de setembro de 2020

O TABULEIRO DO CABOCLO


O Tabuleiro do Caboclo.
(por Antonio Samarone)

Em minha infância, Itabaiana era declaradamente racista. Dizia-se, em Itabaiana não existem Negros. Os poucos, não são daqui. Os fatos desmentiam, mas dane-se os fatos, prevalecia o preconceito.

Os Negros em Itabaiana eram invisíveis.

A maioria dos meus amigos eram negros. Eu cresci jogando bola no Tabuleiro do Caboclo, um quilombo antigo, onde nasceu o futebol na cidade. Um quilombo de paneleiros. Ali se produzia a melhor cerâmica da Região.

Eu convivi com as tradicionais famílias de Negros do Tabuleiro do Caboclo. Os Filhos de Maria Barraca (Manuel, José, Euclides e João) e uma centena de filhos, netos e bisnetos; a família de Mané Padeiro, cheia de craques, (Lima, goleiro do Confiança, Faete, Nado e Manelito), a família de Zeferino, o Divo Preto (um herói da Segunda Guerra).

Seu Mané Barraca, além de afamado rezador, tomava conta do futebol no Quilombo. Ele era o dono da bola e do campo. Era jogador, treinador juiz e cartola. Jogava e apitava ao mesmo tempo. Certa ocasião, ele cometeu uma falta violenta, ele mesmo marcou a falta e se expulsou. Deu cartão vermelho a ele próprio. “Eu estou expulso, a partir de agora fico apenas como juiz.”

Aos domingos, após o “derby”, Seu Manuel oferecia um banquete: uma pirão de galinha de capoeira, só para os apadrinhados. Ninguém contestava a autoridade dele, homem de muito respeito, rezador disputado (não cobrava). Seu Mané Barraca nunca se casou, morava com a mãe. Não merecia ser esquecido, e já foi.

No Beco Novo, onde nasci e me criei, tinha poucos brancos.

Todos Negros: as famílias de Dona Olga, Mercedes, Otuza e Rosalvo do Cabo Quirino, (com os seus pasteis), Dona Tota (a professora de datilografia), Seu Agenor Sapateiro (todas as filhas professoras), os descendentes do maestro Antonio Silva (Toinho, Nilo, Bebé e o professor Airton), Seu Justino e Dona Mãezinha, com uma ninhada de filhos, Euclides alfaiate, a família de Bonito (gente ligada a cultura), Dequinha e Detinha, Seu Pierrô, o Cabo João Mole. Não lembrei da metade.

Na Rua do Fato, para onde me mudei, quase todos Negros. As famílias de Candinho e de Seu Emiliano se destacavam.

Na cidade dos brancos, nas três Praças, nas Ruas do Sol, das Flores, da macambira, Nova, da Pedreira, da Vitória, no Cacete Armado, tinham outras famílias Negras. Antonio de Dóci já escreveu sobre o tema. Devem existir pesquisas desses novos historiadores de Itabaiana, sobre a herança africana na cidade.

Nas Flechas, povoado de minha mãe, destacava-se a família de Bento Costa Carvalho, o Bento das Flechas. Negros que sabiam ler e escrever, professores. Um dos primeiros itabainenses a concluir o curso superior foi o farmacêutico Moisés da Costa Carvalho, filho de Bento das Flechas.

Foi de Itabaiana que saiu Quintino de Lacerda, para se tornar herói do Quilombo Jabaquara e da abolição, em Santos, SP.

O primeiro doido que tive notícias, daqueles antigos, que ainda atiravam pedras, foi Elizeu, filho de Bento das Flechas. Foi o único “doido de pedras” que eu conheci. Depois inventaram os remédios.

A memória dos Negros de Itabaiana foi ocultada. O Quilombo Tabuleiro do Caboclo foi renomeado, na segunda metade do século XX, botaram o apelido de “Cruzeiro”, “Avenida”, e mais recentemente, a Câmara de Vereadores batizou como Bairro São Cristóvão.

Em minha memória continua o Tabuleiro do Caboclo e, em minha Itabaiana, tinha muitos Negros.

Antonio Samarone (médico sanitarista)


 

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