terça-feira, 14 de maio de 2024

A DEUSA FORTUNA E OS JOGOS DE AZAR


 A deusa fortuna e os jogos de azar...
(por Antonio Samarone)

“Quem é ateu e viu milagres como eu/ Sabe que os deuses sem Deus/ Não cessam de brotar, nem cansam de esperar...” Caetano Veloso.

Sigmund Freud descobriu o inconsciente. O psiquiatra suíço Carl Jung foi mais longe, descobriu as profundezas do inconsciente coletivo e os seus arquétipos (comportamentos e valores do passado que pesam no presente).

Observo dois arquétipos poderosos na sociedade itabaianista: os arquétipos religioso e guerreiro. Por aqui, se acredita facilmente em milagres e a competição interpessoal é acirrada, por qualquer besteira.

Jung descreve um arquétipo, o Trickster, que eu não sei a tradução, que trata das travessuras, brincadeiras, humor e trapaças. Ou seja, um arquétipo que trata do jogo de azar, do carteado, da roleta, do pio, do jogo do bicho. Acho que em Itabaiana esse arquétipo é enraizado.

Por lá, se aposta em quase tudo. Os viciados em jogo são abundantes. Cresci, ouvindo falar de cafuas poderosas, muito bem frequentadas. Mesmo nas feirinhas de Natal o jogo de azar corria solto. Mesas de carteados e roletas dominavam a metade da festa.

Para as famílias, existiam as roletas que sorteavam goiabadas e o original “jogo do preá”. Um mesa grande arrodeada de tocas numeradas, onde se soltava o pobre animal no meio e a turba começava a tanger o bichinho para a toca de preferência. Se apostava em qual toca o preá iria se esconder, depois da algazarra humana.

Eu morria de pena do preá!

A alfaiataria de Seu Lau, na Praça de Santa Cruz, era uma cafua disfarçada. Lá, ninguém encomendava um terno. O jogo de baralho virava a noite e rasgava as madrugadas.

Confirmei a força do Trickster, o arquétipo do jogo e da trapaça, ao passar ontem na praça, onde um carteado (a brinca) estava em pleno funcionamento. Cercado de perus. (veja a foto).

O jogo de azar é um elemento cultural forte em Itabaiana. O jogo do bicho funciona há cem anos, ininterruptos, com os mesmos banqueiros.

Atualmente, os jogos de azar dominam o Brasil. A Caixa tem umas trinta loterias, onde as chances dos que arriscam são próximas a zero.

Os jogos baseados nos esportes (BET isso, BET aquilo) comandam o futebol brasileiro: os clubes, as mídias e a CBF. O dono do Botafogo acha que comandam também a arbitragem. Acho um exagero.

Para mim, os jogos de azar são todos de “cartas marcadas”, os perdedores e os ganhadores são sempre os mesmos, sempre, a deusa fortuna (sorte) não se mete.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

domingo, 12 de maio de 2024

NINGUÉM ESCAPA.


 Ninguém escapa!
(por Antonio Samarone)

Germano, 70 anos, anda adoentado. Uma doença que se arrasta vagarosamente. Já bateu as portas de consultórios afamados. Nada! Ninguém descobriu a patologia. Chegaram a dizer que ele nada tinha, aquilo tudo era psicológico.

Germano é rico, possuidor de uma fortuna que as traças e a ferrugem não consomem. É um rentista do mercado financeiro. Para ele, não existe safra ruim, os rendimentos são sagrados.

O certo, é que Germano tem sofrido. E patologia no grego antigo, “páthos” significa sofrimento. Portanto, a dúvida dos médicos é descabida. Germano está doente!

A queixa é incomum: Germano reclama de dor, ardor e formigamento na sola dos pés. Uma dor que impede a deambulação. Germano anda em cadeira de rodas.

A medicina ilumina-se pelo paradigma celular de Virchow. Os sintomas clínicos devem corresponder as lesões orgânicas internas e/ou aos fenômenos fisiológicos baseados nas leis da físico-química.

Em outras palavras, é uma medicina do corpo. Quando o sofrimento foge a esses preceitos, a medicina se perde. O justo, era a medicina reconhecer as limitações. Entretanto, a medicina atua na lógica do mercado. Predomina o valor de troca, para simplificar, o lucro.

A medicina greco-romana era mais sutil. A doença era um desequilíbrio dos humores. O tratamento visava a homeostasia. Na bíblia, a doença é um mal, uma punição, um castigo, uma desgraça.

Quando o sofrimento possuía alguma valia, a doença era redenção, expiação e purificação. Uma porta para o Paraíso. Claro, a medicina possui recursos para aliviar parte desses sofrimentos, inclusive a dor. Nas UTIs, os pacientes morrem sedados. A medicina suaviza a agonia da morte.

Germano foi a São Paulo, a Meca da saúde, em busca de pôr fim ao sofrimento.

Procurou os herdeiros de Charcot. Bateu na porta de angiologistas, imunologistas, podólogos, quiro praxistas, até de um psiquiatra. Germano teve acesso a tudo o que dinheiro pode comprar. Ao todo, realizou 177 tipos exames, no Albert Einstein.

Entretanto, as dúvidas quanto ao diagnóstico permaneceram.

Uma doutora, pós-graduada em Sorbonne, suspeitou de uma doença nova, inexistente no CID 11. "Germano é portador de “SDQ”. Sei, mas o que peste é isso? A Doutora esclareceu: "Síndrome da Dor Quântica. Uma doença rara, de origem autoimune. Ele é o sexto caso descoberto pela ciência."

Trata-se como? Germano quis saber. A doutora foi direta: ainda não existe tratamento! E acrescentou: a Indústria Farmacêutica não vai se ocupar em produzir um medicamento para seis pessoas.

Germano retornou desenganado. Estabeleceu-se em seu sítio, no altiplano do Zanguê, e vai esperar a “velha dama”, onde nasceu. Na falta de tratamento, ele resolveu aplicar cataplasmas de raspa de cama de sapo, duas vezes ao dia. Pelo sim e pelo não, o formigamento nos pés diminuiu.

Esse cataplasma é citado na farmacopeia dos Jesuítas.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

sexta-feira, 10 de maio de 2024

A FÉ, SÓ NÃO REMOVE MONTANHA.


 A fé, só não remove montanhas.
(por Antonio Samarone).

Tenho procurado as raízes religiosas de Itapuama. (“Naquela pedra mora alguém, há uma aldeia com gente.” Ita (pedra), Taba (aldeia), oane (alguém).

Em minhas leituras avulsas e despretensiosas, cheguei a um discurso, pronunciado por Maria da Conceição Melo Costa, em sessão solene do Instituto Histórico de Sergipe, em 1º de agosto de 1946.

As lembranças de Conceição:

“Itabaiana das ladainhas pungentes, das trezenas de Santo Antonio, das tradicionais Semanas Santas, acompanhadas pelas vozes firmes de Balbino, de Boanerges e de Antonio Rodrigues.”

“Itabaiana das lentas procissões dos fogaréus, dos místicos penitentes a se flagelarem, às caladas da noite, em época quaresmal.” Eu ainda alcancei...

Depois, Djalma Lobo introduziu o fogaréu em campanhas políticas, aproveitando-se do arquétipo religioso dos Itabaianenses.

“Itabaiana do Cruzeiro do Século. Das peregrinações a Cruz dos Montes, onde a multidão, com a fé dos romeiros de Lourdes, acampava em barracas erguidas à orla da mata umbrosa, iluminada ao perene himeneu dos vaga-lumes.”

“Itabaiana das campônias alegres, rosas nas faces e laços vermelhos nas bastas cabeleiras, cores de baunilha. Sandálias brancas e vestidos de cassa, para as missas do dia.”

Lembrei-me de mamãe, linda mestiça de cabelos pretos e escorridos, que encharcava as faces e as mãos com tapioca, quando ia lavrar a terra. A pele precisava de proteção.

A memória é uma fonte de felicidades. As tristezas o cérebro apaga, ou minimiza.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.

terça-feira, 7 de maio de 2024

MEMÓRIA CULTURAL DA VILLA DE SANTO ANTONIO E ALMAS (PINTORES E ESCULTORES)


 

Memória Cultural da Villa de Santo Antonio e Almas. (Pintores e Escultores).
(por Antonio Samarone)

O competente Mário Brito, curador, galerista e colecionador das artes plásticas em Sergipe, me fez um desafio: “Itabaiana é grande na economia, na música, no futebol, entretanto, nas artes plásticas, só possui dois nomes conhecidos no estado: Melcíades e Zeus.”

Eu discordo, mas preciso provar. Lancei um desafio a Mário Brito: vamos organizar uma exposição em Itabaiana, com artistas locais, sob a sua orientação! Ele topou! Ontem, ocorreu a primeira reunião. A exposição foi marcada entre 03 e 16 de junho, no Shopping Peixoto, na semana da grande festa dos caminhoneiros.

Como será denominada a exposição, Mário indagou? A resposta foi consensual: Itabaiana, a cidade dos milagres.

Por que cidade dos milagres? Claro, faz referência ao milagre que santificou Santa Dulce. Ocorreu na Maternidade São José, em Itabaiana.

Mas não é só isso. Os milagres vem de longe.

Santo Antônio, o padroeiro de Itabaiana, ficou afamado como poderoso taumaturgo, constando oficialmente de sua hagiografia a realização de mais de 50 milagres.

A carreira taumatúrgica que a hagiografia atribuiu a Santo Antônio certamente pesou na sua eleição como santo doméstico e cotidiano no mundo moderno.

Quando Santo Antônio chegou a Itabaiana (1603), já tinha mais 400 anos de Santo. Sentiu-se à vontade. Ele nasceu em Lisboa, em casa situada perto da catedral, hoje santuário, em 15 de agosto de 1.195. Filho de família fidalga.

Santo Antonio não quis ficar na Capela do Valle do Jacarecica (igreja velha). Mesmo sem água, fugia para o Tabuleiro de Ayres da Rocha.

Após idas e vindas, aí se estabeleceu em 1665, como comprova os documentos da Diocese da Bahia, que instituiu a Freguesia de Santo Antonio e Almas de Itabaiana, a segunda de Sergipe.

No Próximo ano (2025), será a comemoração dos 350 anos. Itabaiana vem de longe.

A religiosidade e a fé nos milagres é um arquétipo constituinte da Cultura Itabaianense.

A exposição de Itabaiana, com a curadoria de Mário Brito, vai iluminar o estado com talentos e criatividades.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

domingo, 5 de maio de 2024

MEMÓRIA CULTURAL DA VILLA DE SANTO ANTONIO E ALMAS (CALABAR).


 Memória Cultural da Villa de Santo Antonio e Almas (Calabar)
(por Antonio Samarone)

Em 1628 e 1629, partiram da Bahia duas expedições à Serra de Itabaiana afim, de encontrar as minas de prata, sendo a última comandada por Domingos Fernandes Calabar.

Domingos Fernandes Calabar, brasileiro, que aderiu aos holandeses quando da ocupação da Capitania de Pernambuco, contribuindo para as vitórias iniciais dos invasores. Prisioneiro dos portugueses em Porto Calvo, em 1635, foi julgado e morto como traidor.

Calabar era um mameluco brasileiro, filho de um fidalgo português e uma índia caetés. Optou por ficar do lado dos holandeses. Não confiava nos portugueses.

Esse gênio militar brasileiro, que resolveu apoiar os holandeses, foi executado aos 26 anos.

Das muitas tentativas de encontrar as minas de prata na serra, algumas vieram do lado dos holandeses, durante a invasão do território sergipano, entre 1637 à 1645.

Documentos afirmam que três vezes foram mandados homens até a serra, cavando inúmeros sítios mais não encontrando nem prata, nem algo de valor.

O comandante português, Matias de Albuquerque, fugindo para a Bahia, passou por Porto Calvo, onde vivia Calabar. Sem Julgamento, mandou executá-lo por estrangulamento pelo garrote vil, e esquartejá-lo em praça pública. Com a chegada dos holandeses, Calabar recebeu um sepultamento cristão.

Os três filhos de Calabar passaram a receber da Coroa holandesa 8 florins cada, o soldo de um soldado. Calabar era brasileiro, ao apoiar a Holanda, não traiu ninguém. Chico Buarque acertou, em sua versão na peça: “Calabar: elogio a traição”.

Domingos Fernandes Calabar (1609 – 1635), nasceu em Porto Calvo, Alagoas. Fez parte de uma expedição holandesa em busca das encantadas minas de prata de Itabaiana.

Calabar não encontrou a Minas de Prata descobertas por Melchior Dias Moreia, dos primeyros naturaes da Bahia, primo de Gabriel Soares de Souza, homem abastado de terras e de bens".

Era este Melchior Dias, filho de Vicente Dias, português e fidalgo, criado do infante D. Luiz, o qual, ao vir tentar fortuna no Brasil, se casara com a mameluca Genebra Álvares, filha de Caramuru. Era conhecido pelo povo, como Melchior Dias Caramuru.

Espero que os competentes historiadores nativos, esmiúcem essa passagem de Calabar por Itabaiana.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

sábado, 4 de maio de 2024

MEMÓRIA CULTURAL DA VILLA DE SANTO ANTONIO E ALMAS.


 Memória Cultural da Villa de Santo Antonio e Almas.
(por Antonio Samarone)

Os Matapoam (Itabaiana) eram Tupis, expulsos do litoral ou uma sub tribo dos Tapuias (Cariris)? Não sei! Foi nessa terra, que João José de Oliveira (1829 – 1899) veio morar, quando chegou de Portugal, em 1849, para exercer o nobre ofício de ferreiro.

João José sabia ler e escrever, casou-se com Maria Pastora do Sacramento (a mameluca Nananhana), de uma aldeia de Itaporanga.

Tiveram 12 filhos, conhecidos como os “ferreiros” de Itabaiana. Juntos aos fogueteiros, sapateiros, pedreiros, padeiros, marceneiros e alfaiates, compunham as profissões dominantes. Uma terra de camponeses e artesões.

Ouvi falar dos filhos de João José: Bernardino (meu bisavô); Tertuliano; Antonio Joaquim; Josefa Maria (Nanã), mãe de Felismino Fogueteiro; José Francisco; Francisco Antonio (acho que avô de Átalo); Quirino José; Benvindo Francisco; Marianda; Felismino (Nonô), pai de João Marcelo; José Oliveira e Joana Maria.

Em 1926, o meu bisavô, Bernardinho, foi atropelado em cima de um burro, por um trem desgovernado, no povoado Caititu, numa segunda-feira, quando ia comprar ferro em Maruim. Uma morte trágica.

A instituição social que possibilitou a formação do povo brasileiro foi o cunhadismo, velho uso indígena de incorporar estranhos à sua comunidade. Consistia em lhes dar uma moça índia como esposa. Assim que ele a assumisse, estabelecia, automaticamente, mil laços que o aparentavam com todos os membros do grupo.

Por parte de pai, descendo de Ascendino José de Santana, filho de Genoveva, natural da Galícia, e de Josina Francisca Teles, negra, filha de escravizada.

Portanto, declaro-me mestiço de quatro costado.

Descendo de trabalhadores rurais sem-terra, trabalhadores avulsos (pataqueiros), arrendatários, que beiravam a produção agrícola e viviam na mais profunda pobreza. A parte fidalga dessa gente, eram os ferreiros.

Hoje a realidade econômica de Itabaiana é outra, com uma presença marcante da classe média.

A classe média aracajuana é formada, sobretudo, por agentes sociais que se valem dos conhecimentos científicos, filosóficos, artísticos e religiosos como forma de existência.

São professores, funcionários públicos, médicos, advogados, engenheiros, entre outras profissões ditas liberais. Todo o judiciário e o estamento militar. A renda é desigual, mas a pose é a mesma.

Em Itabaiana, a classe média é formada por pequenos burgueses, camponeses em ascensão a uma burguesia mercantil, com renda suficiente para um consumo de luxo e novos investimentos. Uma parcela dos ricos, que ainda não pertence a grande burguesia nacional, dominada pelo capital financeiro. Esse capital, procura formas sustentáveis de investimento.

A classe média de Itabaiana é diferente. Claro, composta também por togados e barnabés, mas em minoria. Majoritariamente, ela é empresarial.

O espirito empreendedor do Itabaianense é anterior a hegemonia Neoliberal. Lá, o empreendedorismo é bem mais que uma ideologia, é um modo de vida. Já se nasce querendo ganhar dinheiro. Cada um é dono do saco de castanha que revende. Talvez seja o segredo do seu desenvolvimento.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

sábado, 27 de abril de 2024

OS GATOS E AS FESTAS JUNINAS.


 Os Gatos e as Festas Juninas.
(por Antonio Samarone)

Nas festas juninas do Beco Novo, uma das brincadeiras populares eram os quebras potes. Pendurava-se um pote cheio de gatos num poste, e as pessoas, de olhos vendados, procuravam quebrá-lo. Quando conseguiam, os gatos saiam em disparada, terrivelmente assustados.

Onde nasceu essa brutalidade com os gatos? Em Paris, do século XVI, um dos prazeres das festas junina, era pendurar um saco de gatos numa fogueira. Quando a corda queimava, os gatos eram torrados vivos na pira ardente. A multidão comemorava aos urros.

Eu sei, era bem pior. Se queimavam também as bruxas e os hereges.

Hoje, se coloca guloseimas nos potes, em lugar dos gatos. Em pouco tempo, os gatos ganharam cidadania, direitos e regalias. O quebra pote deixou de interessar.

Uma antiga brincadeira de rodas, onde se cantava que se tinha atirado o pau no gato. Foi condenada. Também não se brinca mais de rodas.

Os humanos sempre foram cruéis. O humanismo é um pretensioso equívoco. Gosto desse poema de Antonio Risério.

“O humano é um engano do humano/ divide o humano, em humano e desumano/ humana é a sala de tortura, a napalme, a navalha, a metralha no gueto, a pele esfolada no porão/, humana, humaníssima a escravidão/ bobagem, nenhum capitalismo é selvagem/ O homem é o homem do homem, todos juntos a uma só voz/ Não consta que roseiras e gaivotas ajam assim.”

A verdade é que não se fazem mais churrasquinhos de gatos, nem se usa o seu couro nos pandeiros. As emoções foram domadas ou sublimadas?

Antonio Samarone (médico sanitarista)

sexta-feira, 26 de abril de 2024

OS MODOS DE SEU NEZINHO.

Os modos de Seu Nezinho.
(por Antonio Samarone)

Não se conhecia garfo no Beco Novo. As comidas sólidas comiam-se com as mãos, e as líquidas, com colheres. As sopas, virava-se geralmente o prato, fazendo-se aquele barulho dos cacarejos.

Os garfos são recentes, do final da Idade Média.

O apelido de “ceboleiro”, não se deve a produção de cebolas. Os feirantes de Itabaiana, na feira de Laranjeiras, na hora do almoço, abriam as mochilas e, com as mãos, faziam bolos de feijão.

Molhavam-se esses bolos no molho de vinagre, cebola, coentro e pimenta. Era um espanto: os feirantes de Itabaiana comiam cebolas, na hora do almoço. São ceboleiros!

No Beco Novo, comia-se com as mãos desde cedo. As mães alimentavam os recém-nascidos, com papas de farinha pó, usando os dedos indicador e médio. Ia-se comendo-se pelas beiras, para a comida esfriar.

Havia uma exceção: Seu Nezinho! Contínuo do Banco do Brasil.

Nezinho estudou Frances, por correspondência. Ele ganhou, do gerente do BB, um clássico de boas maneiras: “De civilitate morum puerilium”, um livro de Erasmo de Roterdã, de 1530. Seu Nezinho, além de bons modos, gostava de música clássica. Possuía a única radiola da rua.

Nezinho era baixo, mestiço, discreto, relógio de pulso e sapato e meia. Bem-casado e pai de filha única. (esqueci o nome da esposa). Para os padrões, uma aristocrata.

Aos domingos, a partir das 9 horas, o Beco Novo era invadido com a boa música. Até a hora do almoço. Galinha de capoeira, arroz amigo, doce de leite, e durante a tarde, uma rede no alpendre e o programa de Sílvio Santos.

Seu Nezinho comia de garfo e faca. Era motivo da curiosidade pública. Se dizia, que em sua casa se assoava o nariz com lenços de cambraia de linho e se limpava a boca com guardanapos de algodão egípcio. Muitos achavam gabolice. Eu mesmo, nunca vi.

No Beco Novo, se assoava o nariz com os dedos. O polegar e o indicador, em forma de pinça.

Na casa de Seu Nezinho, o contínuo, existia uma extravagância na sala de visita: uma escarradeira de porcelana, pintada com flores silvestre e leões esculpidos.

Naquele tempo se cuspia muito. Não sei o que houve, hoje, só jogador de futebol continua cuspindo, durante as partidas. Ninguém cospe mais. Cuspir saiu da moda.

Lá não se cuspia no chão, muito menos nas paredes. A escarradeira era o anteparo. Seu Nezinho era um fidalgo, um homem refinado, cheio de cortesias (courtoisie).

No Beco Novo, ser contínuo do Banco do Brasil, era um privilégio quase divino.

Antonio Samarone – médico sanitarista.
 

quinta-feira, 25 de abril de 2024

NISE DA SILVEIRA.

Nise da Silveira.
(por Antonio Samarone)

Quando a psiquiatria submetia o doente mental a violência do choque elétrico, dos choques de cardiozol, insulínico e a mutilação da lobotomia. Em 1946, Nise da Silveira, se refugiou no departamento de terapia ocupacional do Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro.

Nise tornou-se seguidora de Jung. Estudou em seu Instituto, em Zurique.

Nise da Silveira discordava da ciência psiquiátrica, que considerava o esquizofrênico destituído de afetividades. Nise foi presa em 1936, acusada de comunista. Solta em 1937, viveu clandestinamente no Nordeste, por sete anos.

Uma parte desse tempo, Nise viveu em Aracaju, quando o seu cunhado, Claudio Magalhães da Silveira (1938/40), foi o Diretor da Saúde Pública, no Governo do médico Eronildes Carvalho.

Como uma comunista veio se esconder em Sergipe, governado por um conservador? Eronides de Carvalho serviu ao exército no Rio Grande do Norte, onde conheceu Mário Magalhães da Silveira, irmão do Claudio, nomeado Diretor da Saúde Pública, em Sergipe.

Mario Magalhães da Silveira, o marido de Nise da Silveira, tornou-se um sanitarista famoso, criador do chamado “Sanitarismo Desenvolvimentista”. Mário foi o Secretário Geral da III Conferência Nacional de Saúde, em 1963. Os Magalhães da Silveira eram gente importante nas Alagoas.

São as contradições sergipanas. Eronides de Carvalho não só protegeu Lampião e o cangaço, escondeu também comunistas, durante o Estado Novo.

Nise conta uma história deliciosa: José Clemente Pereira, Ministro de Pedro II, presenteou o Hospício da Praia Vermelha, com 4 instrumentos musicais – uma rabeca, uma flauta, um clarinete e uma requinta – dizendo: “Para os doentes a fim de se distraírem ou talvez se curem.”

Quando presa na penitenciária da Frei Caneca, acusada de ter participado da Intentona de 1935, Nise conta outra história: Os comunistas ficavam misturados com os presos comuns. Nestor, preso por roubo, era quem servia cafezinho, numa bandeja. Quando abria o açucareiro, as formigas se espalhavam na bandeja. “Eu as afastei com as mãos e algumas morreram. Aí eu senti um olhar poderoso em cima de mim, era o olhar de Nestor. Ele me repreendeu: Elas são viventes como nós. Apreendi a lição: nunca mato bicho nenhum.”

Nise da Silveira foi uma benemérita da humanidade. Entrou na Faculdade de Medicina da Bahia, aos 15 anos, numa turma com 150 homens. Formou-se em 1926. Aconselho aos novos psiquiatras, da Era das drogas neurolépticas, a leitura do livro de Nise, “As Imagens do Inconsciente (1981).”

“A loucura é a pior forma de escravidão humana”. Nise ouviu de Spinoza, em sonho.

Antonio Samarone – médico sanitarista.
 

quarta-feira, 24 de abril de 2024

GENTE SERGIPANA - WILSON ALMEIDA SANTANA


 Gente Sergipana – Wilson Almeida Santana.
(por Antonio Samarone)

A história dos caminhoneiros em Itabaiana teve um destaque: Wilson da Transportadora Sergipana. Foi quem chegou mais longe. A sua transportadora cobria o Brasil. Chegou a 18 filiais e mais de cem caminhões.

Wilson Almeida nasceu no Gandu, em 25 de junho de 1932, filho de Ulisses Vicente Santana e Ubalda Almeida Santana, camponeses empobrecidos. Parentes do famoso Clodoaldo, o da Copa de 1970.

No início da década de 1950, com apenas 18 anos, Wilson começou a levar farinha de mandioca para Salvador, fretando caminhões. Foi uma revolução na economia rural. Quem produzia farinha para o consumo local e abastecer Aracaju, passou a fornecer para Salvador. Mudou a escala.

Antes, a farinha era transportada em lombos de burros. O caminhão permitiu ampliar o mercado para a famosa farinha de Itabaiana. O dinheiro passou a circular na Zona Rural. A farinha pó do Rio das Pedras, fazia o papel da “maizena – amido de milho”. A qualidade de vida foi melhorando.

A iniciativa de Wilson o empurrou para o ramo de caminhões.

O caminhão chegou cedo a Itabaiana, em 1928, com Esperidião Noronha. O crescimento foi lento, em 1945, existiam 18 veículos. Em 1952, com a chegada da BR – 235, mudou a realidade. A frota cresceu. O caminhão se transformou em um polo de desenvolvimento.

O caminhão trouxe as concessionárias, as oficinas, as fábricas de carrocerias e emprego para muita gente. O espirito competitivo dos Itabaianenses, de entregar as cargas na data combinada, foi um diferencial. Muitos, pagaram com a vida.

Em 1970, Itabaiana já possuía 373 caminhões.

Wilson Almeida foi casado com Maria Renildes Pimentel, filha de Zeca Titia, comerciante estabelecido no ramo de sapatarias. Seu Zeca foi quem levou a sandália de borracha (japonesa) para Itabaiana. Antes, era tamanco ou pés descalços.

Wilson e Renildes (foto), tiveram três filhos: Wilsinho, Ulisses e Wilma (falecida em acidente, na estrade de Maceió).

Wilson, com a esposa, faleceram precocemente de acidente de trânsito, próximo a Teófilo Otoni, em 28 de julho de 1983, aos 51 anos. Está sepultado no Cemitério de Santo Antonio e Almas.

Wilson da Sergipana, foi um homem generoso. Ficou rico ajudando a muita gente.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

domingo, 21 de abril de 2024

FERNÃO CARRILHO


 

Fernão Carrilho.
(por Antonio Samarone)

O Dr. Thomas, oftalmologista da escola de Hilton Rocha, é um amigo que deixei em Belo Horizonte (1980/81). Colega da residência médica, na UFMG.

Mantemos contatos frequentes, pelas redes sociais.

Ontem, ele enviou-me um vídeo de “Punta del Este”, onde está hospedado. A surpresa: o vídeo é sobre um cidadão do Carrilho, vendendo castanha assada e fazendo a propaganda em versos, no Uruguai.

A castanha do Carrilho ganhou o mundo. Hoje são 4 povoados: Carrilho, Tabocas, Dendezeiro e Lagoa do Forno. Itabaiana não produz a castanha “in natura”, precisa buscá-las no Ceará e Piauí. O comerciante vai comprá-las onde se produz e repassa para os pequenos empreendedores.

No Carrilho, a castanha in “in natura” é vendida aos empreendedores locais, por de 5 reis, o quilo. Um saco de 50 kg de castanha, bem trabalhadas, resultam em 10 kg de castanhas assadas. A trabalhadora que assa e quebra, recebe cem reais por cada saco de castanha assada.

Uma curiosidade, para amenizar o calor, esse trabalho de assamento é feito geralmente pela madrugada.

Como, sem grandes plantações de cajueiros, Itabaiana se tornou o maior produtor de castanhas assadas do Brasil? Um esclarecimento: castanha assada! A castanha do Ceará é cozida em altos-fornos e autoclaves. É outro produto.

A castanha assada do Carrilho é uma herança do antigo quilombo. A castanha é colocada em bandejas perfuradas, sobre o fogo, diretamente. Em minha infância, colocávamos em bandas latas furadas.

O segredo é o ponto. O assamento deve ser suspenso no momento certo. A castanha nem pode queimar, nem ficar crua. Deve ficar em ponto de permitir quebrá-las inteiras. Depois se faz o pelamento. Tira-se a casquinha. Esse processo é todo manual, feita por peritas seculares.

O Carrilho leva o nome de uma Entradista português, Fernão Carrilho, encarregado de destruir os quilombos de Sergipe, no século XVII. Carrilho foi comandante em Palmares e Presidente da Província do Maranhão.

Mas o sucesso do negócio da castanha assada do Carrilho, além da experiência de se assar a castanha, é preciso que se encontre mercado para vendá-las. A produção se realiza no consumo.

A viabilidade da produção da castanha, deve-se aos vendedores. Gente que sai de Itabaiana em meados de novembro, com uma Van carregada de castanha assada, e só retorna depois do carnaval.

Periquito, o vendedor que o meu amigo conheceu em Punta del Este, e fez o vídeo, faz parte dessa longa cadeia produtiva da castanha assada do Carrilho.

Não existe desemprego no Carrilho. Nem pedintes.

O povoado possui água tratada, esgoto, luz elétrica, pavimentação asfáltica, casas de alvenaria bem cuidadas, praça urbanizada, com área de lazer para as crianças, escola e creche. Não se registra problemas de segurança pública, nem galinha se rouba.

Dorme-se de portas abertas!

Antonio Samarone. – médico sanitarista.

sábado, 20 de abril de 2024

ASSIM FALOU, SILVEIRINHA.


 Assim falou, Silveirinha.
(por Antonio Samarone)

O doutor Silveirinha, um miliciano de jaleco, vive com ares de vitória. Ele carrega a guerra na alma. Está preparando uma grande manifestação para a vinda de Bolsonaro a Sergipe. O Mito virá receber o segundo título de cidadania.

Silveirinha me esclareceu, não são os mesmos. Um título é de Cidadania Sergipana e o outro é de Cidadania de Sergipe.

O doutor Silveira, profetizou: “No Brasil, independente de quem esteja no Governo, os donos do Poder somos nós. Os do andar de cima. O terceiro governo Lula comprova essa tese.”

Fiquei pensando, nesse ponto, o doutor Silveirinha está certo.

O governo Lula não tem forças para enfrentar a extrema-direita. Faz concessões escandalosas ao mercado financeiro e ao neoliberalismo, para manter a governabilidade. Sem sucesso!

Por outro lado, sufoca a sua base de apoio. A classe C, que emergiu no segundo governo Lula, ainda não sentiu o aumento da sua capacidade de consumo. Os índices econômicos divulgados não se refletem em seu bolso.

A alma de Silveirinha já reencarnou fascista. Em outras gerações, ele foi um camisa negra de Mussolini. A novidade foi a adesão em massa da classe média, ressentida pela redução da renda, regalias e prestígios.

Retruquei a Silveirinha:

O PT não está enganando, o Partido nunca prometeu mudanças estruturais. A promessa foi café, almoço e janta. Só que a classe “C” quer mais, quer a picanha.

Vivemos uma escalada fascista no mundo. O neoliberalismo não tem mais o que oferecer a classe trabalhadora. A tecnologia é poupadora de mão-de-obra. Restam trabalhos precarizados. A democracia não é uma abstração. Sem alternativas, a burguesia adere ao fascismo: guerra, violência e exclusão.

O presidente da Argentina, com toda a extravagância, tem o apoio das classes dominantes portenhas. O Javier Milei está requerendo a entrada da Argentina na OTAN.

A polarização do mundo (EUA X China) marcha para a Guerra. O Brasil não manterá um pé em cada lado. O Império não vai abdicar do Brasil. A sucessão de Lula em 2026, com Trump no Governo dos EUA, será uma disputa internacionalizada. Esses ataques de Elon Musk são aperitivos.

Profetizou Silveirinha:

“Voltaremos ao poder, em 2026, pelo voto. Trump volta antes. Implantaremos a tolerância zero, aos modos da polícia de Tarcísio, em São Paulo. Os de baixo serão domados a ferro quente. Faremos julgamentos sumários nas periferias.”

Por outro lado, fazendo de conta que não enxerga a realidade, o PT tenta ser bonzinho, seduzir os que mandam, prometendo administrar o neoliberalismo, com uma face humana. As contradições são evidentes.

Eu desconheço alternativas viáveis pela esquerda. Está condenada a defender a ordem e tentar humanizar o capitalismo, como se fossem possíveis.

Os fatos apontam para a guerra, onde os dois lados possuem a bomba atômica. As pulsões destrutivas do ser humano, reveladas por Freud, estão a flor da pele.

"Os Impérios não caem por convencimento", ensina Silveirinha.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

GENTE SERGIPANA - FIO DE DEUS

Gente Sergipana – Fio de Deus.
(por Antonio Samarone).

Nunca soube o seu nome. Poucos sabem. Viveu assim em Itabaiana, prá lá e prá cá. Sempre sorridente e brincalhão. Hoje, com 76 anos, continua o mesmo.

Fio de Deus é a cara da felicidade. Nunca precisou cumprir o castigo divino, de ganhar o pão com o suor do rosto. Sobreviveu de biscates. Sempre contando vantagens. Com 1.30 de altura, se acha bonito, cheiroso, sabido e sortudo.

Nunca encontrei o Fio de Deus reclamando de nada. Se lamentando. A vida sempre foi um passeio celestial. Nunca invejou a vida dos outros.

Ninguém duvide da idade de Fio de Deus, a foto é uma prova. Ser torcedor do Vasco, comprova a sua velhice. O último menino a começar torcer pelo Vasco, fazem mais de 30 anos.

Ele é filho de Dona Gemelice, a maior doceira do Canto Escuro. Os seus manuês de puba e aipim, eram disputados. Ainda sinto o gosto de cada tirinha. Defino se um bolo presta, pela lembrança gustativa dos seus manuês!

Para os mais novos: os manuês são os pais dos bolos, bem mais saborosos. Possuem uma casca molinha, levemente tostadas, que não sei descrever o sabor. Sei que são deliciosas.

Conheço Fio de Deus desde menino. Nunca soube de nenhuma perversidade e nenhum desvio. Nunca mexeu no alheio, nem arrumou inimigos. Se a seleção para entrar no Céu for justa, ele entra.

Ontem o encontrei na Feira. Dei um abraço, perguntei por Terto, o irmão. Dona Gemelice já faleceu. Ele continua se achando uma lindeza.

Fio de Deus, ostenta uma felicidade deslumbrante.

Antonio Samarone. Médico sanitarista.
 

INCLUSÃO CULTURAL


 Inclusão Cultural.
(por Antonio Samarone)

“A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte.” – Titãs

A coordenação do programa “Cinema na Rua”, vai mudar o foco. Levará o Cinema para as pessoas acolhidas da Casa Santa Dulce, em Itabaiana.

São pessoas acolhidas pela caridade. Gente sofrida, desamparada, que ganharam um lar, assistência, carinho e proteção. Elas merecem a sétima arte, com direito a pipoca e refrigerante. O filme, eles estão escolhendo.

O “Cinema na Rua, dessa vez, será nessa Casa de misericórdias, na terça-feira, dia 23, as 14 horas. Estão convidados.

Sei que muitos não irão acreditar: Itabaiana não tem morador de rua. Um ou outro, recém-chegado, será acolhido. Essa é a nossa maior glória.

A Irmandade de Misericórdia, vinda de Portugal, ainda no século XVI, possuía sete compromissos: dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, visitar os enfermos e encarcerados, abrigar os desamparados, resgatar os cativos e enterrar os mortos.

A Casa Santa Dulce, em Itabaiana, acresceu o acesso à cultura e a arte.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

GENTE SERGIPANA - BEROZO



 Gente Sergipana – Berozo.
(por Antonio Samarone)

Com a proximidade do centenário da chegada do caminhão em Itabaiana, resolvemos recuperar parte da memória dos caminhoneiros. Gente que empenhou a vida, na construção da cidade.

Josino Tavares dos Santos (Berozo), (91 anos), nasceu no Batula, em 23/09/1933, filho de José Álvaro dos Santos e Dona Josefa Tavares dos Santos.

Berozo começou tangendo carro de Boi. Ainda menor, foi motorista ajudante de Tonho de Chagas, e se meteu na Rio Bahia (1950). O caminhão ganhava força em Itabaiana. Timbeu, Toinho do Bar, Jason Correia, Osias Lima, Heleno Bacalhau, Irineu Gravata, entre outros.

Em pouco tempo, Berozo guiava um FNM, do cunhado, Wilson da Sergipana. Como o trabalho era informal, na saída, ele recebeu como indenização um F8, americano. Em sua casa, no povoado Pai André, ele mantém uma Scania 112, como objeto de estimação.

Segundo ele, aos 91 anos, continua na ativa no volante. Garantiu, que na próxima festa de Santo Antonio, estará na carreata da dos motoristas.

Beroso está com a memória e cognição perfeitas, fala sobre tudo, sobretudo política.

Berozo foi motorista do Coronel Euclides Paes Mendonça, com quem mantinha uma relação de muita proximidade.

O apelido Berozo, foi obra de Dedé Cachaça, delegado de quarteirão, um personagem folclórico em Itabaiana.

Berozo é casado com Dona Ubaldina Almeida Santos, e pai de sete filhos, dos quais, dois caminhoneiros. Berozo é tio do Jurista e Professor Dr. Alvino Filho.

Seu Josino Tavares, no anonimato, trabalhou dignamente, arduamente, singrando as rodovias desse país. Um brasileiro que transportou riquezas e pessoas, com uma dedicação sacerdotal.

Antonio Samarone – (médico sanitarista)

terça-feira, 16 de abril de 2024

O VELHO CORIFEU.


 O velho Corifeu.
(por Antonio Samarone)

Nos primórdios, o PT se achava um partido comandado pelas bases. Cada reunião era uma assembleia, onde se discutia os destinos da humanidade. Finalmente, a classe trabalhadora tinha encontrado um farol.

O “basismo” ideológico era uma resposta aos Partidos Comunistas, que acreditavam numa vanguarda do proletariado. Os comunistas não souberam derrotar a ditadura, pensava a mocidade revolucionária.

No PT, as discussões eram tábulas rasa, tudo começava do zero. A opinião do mais humilde e noviço militante valia tanto, como a dos velhos e cascudos líderes.

Aliás, ser acusado de intelectual, não era um defeito pequeno.

Nos encontros, as posições políticas eram antecedidas de “teses”, escritas previamente para subsidiar os debates. Uma herança marxista, da política como ciência, guiada por princípios. Qualquer polêmica, os mais puros diziam aos brados: “princípios não se negociam”. Como quase tudo era princípio, as negociações ficavam prejudicadas.

Após exaustivas discussões, aos sábados pela manhã, após centenas de inscritos, quando a confusão estava em seu auge. O último inscrito para falar, o professor Luiz Alberto, emitia o veredicto final. Que valeria até a próximo sábado, onde tudo seria reaberto.

Luiz Alberto costurava as teses mais esdrúxulas. Dava a razão a quase todos os oradores, para, no final, iluminar a todos com a verdade. Luiz era um cavalheiro. A sua fala deixava um ar de satisfação, de missão cumprida. Afinal, a tese de que trabalhador só vota em trabalhador, era quase uma certeza. Uma unanimidade.

Claro, quase tudo isso era “Mise en Scène”, que a maioria acreditava.

Hoje, o PT segue outro caminho. As discussões são outras. Fico pensando, talvez, o professor Luiz Alberto, não tivesse espaço para as suas longas e brilhantes análises de conjuntura. Quando o professor citava Marx, era um encantamento geral, a certeza da verdade.

Um antigo correligionário, me confessou que não se lembrava de mais nada, nenhum tópico, nenhum tema, nenhuma divergência mais relevantes. Nada, nada ficou das eternas reuniões matinais dos sábados. Eu fiquei calado, mas também não me lembro de muita coisa.

O mundo, o Brasil, a política e as esquerdas mudaram muito.

Saudades, dos tempos do Professor.

Antonio Samarone. (médico sanitarista)

domingo, 14 de abril de 2024

A SABEDORIA É UMA VERDADE NARRADA


 A Sabedoria é uma verdade narrada.
(por Antonio Samarone)

João Conrado (86 anos), é o mais antigo paneleiro do Tabuleiro dos Caboclos. Pai de Santo e Rezador. Na verdade, a sua especialidade é contar histórias, reais ou inventadas. A sabedoria vem de longe.

Imensas rodas de gente de oiças abertas, formam-se para ouvir Conrado, nos finais de tarde. Gente estropiada da labuta. As narrativas precisam de silêncio. Nem os cachorros latem. Por vezes acende-se uma fogueira.

A comunidade do Tabuleiro, quase quilombola, resiste ao massacre da informação dos Big datas, da objetividade dos algoritmos. O smartphone permite apenas a troca acelerada de informações. Não permite narrações. Atropela as empatias.

O capitalismo se apropriou das narrativas. A informação fragmentou o tempo.

O mundo de Conrado é encantado. Sua sabedoria reflete a sua experiência de vida. A narrativa precisa de tempo, paciência para escutar. A narrativa produz histórias que permitem margens para o milagre e o mistério. O cérebro é analógico.

“Narrar e escutar atentamente historias se condicionam mutuamente. A comunidade narrativa é uma comunidade de ouvintes atentos.” – Chu Han

A comunidade do Tabuleiro dos Caboclos foge da caixa preta dos algoritmos. Não sei até quando. O lado épico da verdade está em extinção. Essa gente nada tem a perder, com diz o Velho Manifesto.

Foi no Tabuleiro dos Caboclos que nasceu o futebol em Itabaiana, que, ao lado da religiosidade e do espírito desbravador dos caminhoneiros, formam um alicerce cultural.

São os últimos habitantes de um mundo encantado, que resistem a dessacralização da vida.

O fogo mítico ainda não foi extinto. Não se mija impunemente nas fogueiras.

Se a vida não puder mais ser narrada, a sabedoria entra em decadência. Ela será substituída pela “técnica de solução de problemas”, que os deslumbrados chamam de inteligência artificial.

A força das reuniões do Consulado de Itabaiana, às quintas, na Praça, consiste em manter aberto o espaço das narrativas. Estamos perdendo a paciência em ouvir calados. Os que não querem ouvir, são os coveiros das narrativas.

Conrado também exerce o papel de conselheiro. “Ouça um conselho que eu lhe dou de graça": não adianta dormir que a dor não passa.” Chico.

“A vida que se desloca de um presente para outro, de uma crise para outra, de um problema para outro, reduz-se a uma sobrevivência.” Chu Han. Uma vida desnuda.

Para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, basta que nos ponhamos a narrá-lo. – Satre.

Antonio Samarone – médico sanitarista

sábado, 13 de abril de 2024

A GLÓRIA ETERNA


 A Glória Eterna.
(por Antonio Samarone)

Fui procurado pelo colega, Dr. Silveirinha, para assinar um manifesto de apoio a Elon Musk. Me fiz de desentendido: quem é esse Musk? Ele se impacientou: “Elon Musk é o dono do Twitter, um defensor da liberdade.”

A alma de Silveira é fascista. Aliás, sempre foi. Antes, não se expunha, curtia a sua crença em silêncio.

Ponderei, Dr. Silveira, a liberdade de Elon Musk é uma, a minha é outra. Ele fala de liberdade de se fazer o que quiser, sem limites. A minha é a liberdade democrática, tem limites, a nossa termina onde começa a do outro.

A minha liberdade não permite Fake News, mentiras, agressões, ódio e difamações. Não existe a liberdade de se praticar crimes.

Silveirinha achou esses argumentos, conversa de comunista. A liberdade é uma só, disse-me ele.

O Dr. Silveira, já velho, incorporou uma obsessão pela glória. Das quatro fontes de vaidade do Ego humano, poder, riqueza, honra e glória, ele só abriu mão da honra. O preço era alto, confidenciou o doutor.

O poder e a riqueza de Silveira vieram sem muito esforço. Silveira Já nasceu rico e poderoso. Depois, a medicina duplicou o patrimônio.

Mas, faltava a Glória.

Entregou o cabedal aos cuidados dos filhos, e correu atrás da Glória.

Silveirinha tornou-se membro titular de dezenas de Academias de Letras, Ciências e Artes, Institutos Históricos, e confrarias culturais, fez por receber dezenas de Comendas, a última foi a Ordem de Cristo, do Vaticano.

O doutor, não perde palestras, conferencias, aulas magnas, lançamento de livros e saraus.

É uma obsessão pela glória e escolheu a cultura, por achar a forma mais fácil. Tornar-se herói, ídolo, artista, atleta, cientista, santo, mártir, tudo isso estava fora de cogitação.

Restou a cultura!

Investiu em publicação de livros, todos capa dura, fios dourados, papel de bíblia, um luxo. Algum desavisado pode perguntar: E o conteúdo? Bem, ele aposta que os leitores serão poucos, tornando esse item de pouca importância. Está no prelo um livro de poesia.

Silveirinha resolveu seguir a orientação de Voltaire (“Devemos cultivar o nosso Jardim”), e criou uma “Academia dos Vencedores”, dele, sem interferência dos invejosos, onde ele escolhe os eleitos e as sessões são recheadas de louvações. Cada membro, pode usar até 15 minutos do seu tempo, para elogiar os demais.

O Dr. Silveira é o presidente vitalício.

“Academia dos Vencedores” já tem sede própria, com um auditório de 300 lugares. A sede fica na Praça Camerino, pelos fundos do Museu da Gente Sergipana. Pela frente é discreta, parece uma casa antiga, mas as instalações são de puro luxo, inspirada na arquitetura romana. Na entrada tem um busto de Cícero.

O Dr. Silveira é um homem atualizado. Comprou um aplicativo de inteligência artificial, no Vale do Silício, onde os discursos, textos, ensaios, e até poesia, já veem prontos, é só ctrl C, ctrl V, e se ganha tempo.

O Dr. Silveira escolheu envelhecer sob aplausos. Luta pela glória. Nada contra, só não posso assinar a moção de apoio a Elon Musk.

Antonio Samarone (médico sanitarista).

terça-feira, 9 de abril de 2024

O CINEMA EM SERGIPE.


 O Cinema em Sergipe.
(por Antonio Samarone)

Um dos males da cultura é o seu desenraizamento. Os eventos soltos perdem força e sentido. A última bienal de Itabaiana (2023), foi um exemplo.

No próximo 30 de abril, inicia-se em Itabaiana um “Festival Internacional de Cinema”. Isso mesmo, um evento grandioso. O festival é organizado por gente do cinema, e tem como coordenador Andrei Ferreira, membro da Academia Brasileira de Cinema.

Entretanto, o festival não tem donos, o festival é uma expressão cultural de Itabaiana.

Sei que os irmãos Lumière, inventores do cinema, estão em festa, com a força da sétima arte em Itabaiana. Quando eles exibiram o primeiro filme, “Sortie de l’usine Lumiére à Lyon”, em dezembro de 1895, lá estava o sergipano Cândido Aragonês de Faria, encarregado de produzir os cartazes.

Entre 30 de abril e 05 de maio de 2024, acontecerá o Festival Internacional de Cinema de Itabaiana. Não se assustem, é festival internacional mesmo. Tivemos 1.454 filmes inscritos, sendo 72 selecionados. Teremos filmes de 20 países. Inclusive, filmes russos, americanos e chineses.

Teremos 15 sessões de cinema durante o festival, além de oficinas, painéis, exposição fotográficas, apresentações artísticas e exposições imersivas.

O filme “O Sequestro do Vôo 375, será um dos filmes convidados, com a presença das duas produtoras.

Uma agência chinesa de cinema, exibirá os filmes premiados em três cidades da China.

Venham conhecer a força do cinema em Itabaiana. O festival ocorrerá no Shopping Peixoto, que tem sido um parceiro importante da cultura Itabaianense.

Salas de cinema em Itabaiana, existem desde a década de 1930.

Um dado relevante, todas as exibições serão gratuitas, financiadas pela Lei Paulo Gustavo.

Itabaiana tem grande tradição cultural na música e na fotografia. Chegou a vez do áudio visual. O cinema viceja em Itabaiana, com a volta do cinema de rua, e agora com esse festival internacional.

Antonio Samarone – Secretário de Cultura de Itabaiana.

domingo, 7 de abril de 2024

O DR. PLÁCIDO PEDE A PALAVRA.

 

O Dr. Plácido pede a palavra.
(por Antonio Samarone)

O Dr. Plácido me telefonou de Canudos, para discordar do meu texto sobre ele. Foi direto: “você foi superficial e pretensioso!” Ainda me indicou um livro recente de César Benjamin, “Além de Darwin”. No Raso da Catarina, ele compra tudo pela Amazon.

Em meu tempo, disse-me ele, a biologia, ensinada no curso básico, era parte da antiga ciência natural. O conteúdo era botânica, zoologia e corpo Humano. Teoria da evolução, citologia e genética, não se tocava no assunto.

Ainda alcancei!

 
Plácido prosseguiu: em 1859, a biologia deu uma reviravolta, que demorou chegar à escola básica.

Charles Darwin publicou a “Origem das Espécies”; Rudolf Virchow a “Patologia Celular” (“Omnis cellula ex cellula);” Claude Bernard “A propriedade fisiológica e as alterações patológicas dos líquidos dos organismos”; Félix Pouchet “O Tratado da geração espontânea, criando a famosa polêmica com Pasteur.

Plácido citou Benjamin:

“Em 1751, Lineu publicou a sua “philosophia botânica”, descrevendo 4.235 espécies vegetais e animais, admitindo poder chegar a 10 mil. Hoje, se conhece cerca de quatrocentas mil espécies vegetais e um milhão e meio de espécies animais. Cerca de 10 mil novas espécies são identificadas por ano.”

“Carlos Lineu, médico sueco, seguiu a classificação de Aristóteles, que acreditava em espécies imutáveis, criadas por Deus. As espécies eram as, mesma que desceram da Arca de Noé, no Monte Ararat (atual Turquia), depois do dilúvio.

Eu aprendi na Faculdade a medicina das espécies. Conceituada por Foucault, em seu clássico, “O Nascimento da Clínica”, que os colegas médicos ignoram.

A teoria da evolução foi uma revolução intelectual. É chocante afirmar que a fauna, a flora e a própria humanidade resultaram de um processo cego, contingente, pragmático, sem finalidade, sem moralidade, submetido ao acaso e as leis naturais.

É verdade, Galileu tirou o mundo do centro do universo e foi excomungado. Livrou-se, por pouco, da fogueira da inquisição. Darwin foi mais longe, tirou o homem do centro da criação. Somos apenas mais uma espécie, recente e efêmera.

Essa crença de que somos a imagem e semelhança de Deus é uma profunda ilusão.

“Entretanto, o pensamento não é uma propriedade da matéria. Não são apenas sinais elétricos e neurotransmissores. A biologia depois revelou aspectos da vida que não se enquadram apenas em fenômenos físico-químicos. Sem recorrer à metafísica”, acentuou o Dr. Plácido.

O Dr. Plácido prometeu que depois me apresenta as proteínas alostéricas. Fiquei curioso.

Contrariando o senso comum da medicina, “os seres vivos não são máquinas. Os organismos constroem a si; tem mecanismo de preservação e se reproduzem, seguindo um código. Também não são computadores: não há hardware, nem software, nem podem ser ligados e desligados.” - C. Benjamin.

A medicina se perdeu nessa encruzilhada.

Depois, Eu conto o resto da esclarecedora conversa com o Dr. Plácido Canuto e da leitura do livro do Benjamin.

PS – a minha profunda homenagem a Ziraldo.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

quarta-feira, 3 de abril de 2024

GENTE SERGIPANA - CHICO VIÚVO


 Gente Sergipana – Chico Viúvo
(por Antonio Samarone)

A história dos caminhoneiros em Itabaiana vem de longe. Em 2027, completa-se cem anos que Esperidião Noronha apareceu com o primeiro. Será o centenário! Não se chega a Capital Nacional do Caminhão sem história.

Francisco José de Oliveira (Chico Viúvo), 96 anos, se lembra de quase tudo. Foi um dos primeiros motorista de Itabaiana a dirigir na Rio Bahia (1951). Antes da BR – 235. Saia-se de Itabaiana pelo Sertão da Bahia, Jeremoabo, até Feira de Santana.

Trabalhou como motorista para muita gente: Miguel Tenente, Jason Correia, Toninho do Bar, João de Balbino. Prestou serviço na poderosa “Transportadora Sergipana”, do Itabaianense Wilson, casado com a filha de Zeca Titia.

Chico Viúvo nasceu em 25 de novembro de 1928, filho de João Calisto de Oliveira e Josefa Maria de Jesus. Logo cedo apreendeu a dirigir. A sua habilitação é de 1953, tirada em São Vicente, baixada santista.

Chico é casado com Dona Marilene, um casal com 10 filhos, todos vivos.

Hoje, perto do centenário, Chico Viúvo demonstra uma profunda nostalgia das estradas. Tem saudades! Um profissional que ajudou a construir Itabaiana.

A minha homenagem a esse grande brasileiro.

“Essa é a glória que eleva e consola.” Machado de Assis.

Antonio Samarone – Secretário de Cultura de Itabaiana.

terça-feira, 2 de abril de 2024

GENTE SERGIPANA - PLÁCIDO CANUTO


Gente Sergipana – Plácido Canuto.
(por Antonio Samarone)

Freud no Sertão.

Freud rompeu com a medicina oficial. A psiquiatria, no início do século XX, seguiu o médico alemão Emil Kraepelin, com a sua psiquiatria orgânica.

“Só as pulsões são verdadeiras. O Ego e o Superego são solúveis em álcool.” Garcia Moreno.

Plácido Canuto, 92 anos, formou-se na Bahia, na centenária Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus. Plácido nasceu em Cipó de Leite, uma Aldeia de Carira. Os pais eram de Itabaiana. Após a especialização, montou o seu consultório itinerante no Sertão Baiana, atendendo às segundas-feiras na cidade de Carira.

Plácido, chegou a psiquiatria pelas mãos do sábio sergipano Garcia Moreno. Uma psiquiatria quase freudiana. Ele exerceu, a psicanálise no sertão Bahia/Sergipe, em meados do século XX.

Antes de abrir o consultório, o Dr. Plácido fez especialização em psicanálise, por seis meses, em Freiberg, na Morávia. Passou 2 anos circulando pela Europa, transpirando a cultura do Velho Mundo. Plácido é filho único de um grande latifundiário.

Ao retornar, logo percebeu que o inconsciente é histórico. O Freud descrevia em suas análises, os sonhos dos seus pacientes, brancos, europeus do fin-de-siècle. Plácido observou que o inconsciente dos sertanejos, não batia com os descritos nos livros.

As suspeitas do Dr. Plácido se confirmaram, após a sua leitura do clássico, do seu colega médico, Guimarães Rosa. O romance de Riobaldo com Diadorim é uma aula da teoria freudiana, em sua versão sertaneja.

Hoje, aos 92 anos, o Dr. Plácido é um médico esquecido. A idade concede aos idosos, antecipadamente, as prerrogativas dos mortos.

A medicina de mercado não cultua os improdutivos. À Academia Sergipana de Medicina, mudou até os estatutos, para jubilar os idosos legalmente. Não bastasse o esquecimento natural. A imortalidade, na Academia, passou a ser uma prerrogativa dos vivos. Para os idosos, virou uma pós-imortalidade.

Uma imortalidade pós-moderna!

O Dr. Plácido é um homem fino, culto e possuí um grande cabedal. Continua bem de memória. Quando novo, trabalhava por vocação e caráter. Não tem herdeiros. A esposa já faleceu e não teve filhos. Mora num castelo, no miolo do Raso da Catarina.

O Dr. Plácido Canuto Lê os textos de Freud em alemão.

Na entrada de sua Fazendo, o Dr. Plácido entronizou uma estátua, tamanho normal, de Sigmund Freud. Avistada as léguas de distância.

O Grande Sertão - Veredas, virou o livro de cabeceira do Dr. Plácido Canuto, o Freud do Sertão. A sua edição é autografada pelo colega, o Doutor Rosa, como ele ainda chama, com intimidade.

Antonio Samarone – médico sanitarista.
 

sábado, 30 de março de 2024

UM NEGÓCIO DA CHINA


 Um Negócio da China.
(por Antonio Samarone)

Finalmente, Pachequinho colou grau em medicina. Um esforço familiar. O pai, Seu Pacheco, contabilizou o investimento na ponta do lápis: um milhão e cento e oitenta mil reais. A Faculdade SNTP - Saúde não tem Preço, do grupo Mercantil, cobra mensalidades extorsivas.

O curso, bem, o curso é uma arrumação. O manto imaginário das ciências médicas cobre quase tudo. A SNTP forma bons médicos? Essa pergunta depende do que se entenda por “bons médicos”. A medicina de mercado é hegemônica. A regra do mercado é o lucro.

Pachequinho nunca pensou em especializações. Tempo é dinheiro. O investimento precisa de retorno. O saber médico sem o espírito empreendedor do médico não vai longe.

Na semana seguinte, o consultório de Pachequinho estava de portas abertas, na Galeria Bom Preço, Rua do Mercado. O ponto é bom. Rejeitou todos os convênios, só atendia a particulares e a vista. Os dias se passaram e a clientela não aparecia. Um ou outro gato-pingado.

Pachequinho não penou até aqui, para entregar os pontos. Estava disposto a vitória a qualquer custo. Soube que o diabo continuava comprando almas, só que o preço estava defasado.

Ficou sabendo que o SEBRAE estava ofertando um curso para jovens empreendedores: “Pequenas Empresas, Grandes Negócios”.

Não perdeu tempo. Com a capacitação, vários negócios apareceram.

Pachequinho descobriu que uma empresa coreana oferecia bobinas de eletro estimulação magnética, em forma de leasing, cobrando uma pequena parcela por procedimentos realizados. A empresa coreana ainda garantia um curso gratuito de capacitação para o doutor.

Pachequinho se capacitou e espalhou nas redes sociais que estava realizando o Transcranial magnetic stimulation ou TMS, assim mesmo, em inglês. Passou a usar a estimulação magnética para quase tudo, uma panaceia.

Eu sei, a “Estimulação Magnética Transcraniana” pode ajudar no diagnóstico de alterações dos parâmetros neurofisiológicos.

Entretanto, o uso feito por Pachequinho foi o tratamento da depressão. Cada sessão custa mil e quinhentos reais. O tratamento completo são 6 sessões. Nesse caso, o custo final é reduzido para cinco mil reais. As despesas podem ser dividida em dez parcelas e aceita-se qualquer cartão.

Se o paciente indicar o tratamento para outra pessoa, recebe um bônus de quinhentos reais por cada paciente encaminhado. Essa rede tem funcionado. A clínica de Pachequinho já possui 12 bobinas em atividade, 24 horas, e a fila é grande. As sessões das 22 às 7 horas, custam apenas 750 reais. Uma pechincha!

Pronto, o investimento da Família Pacheco foi recuperado em menos de um ano. A clínica de Pachequinho cresceu, montou filiais, diversificou os procedimentos ofertados, suspendeu o leasing e comprou as bobinas.

No Brasil, a medicina de mercado nada de braçada. Cada um é o juiz de si próprio. A conduta do médico é livre, o limite é a sua própria consciência.

Pachequinho deixou a faculdade com uma lembrança. Na solenidade de formatura, o orador, um médico conceituado, revelou em seu discurso: “Hipócrates acreditava que as doenças são curadas por uma “vis mediatrix naturae”, ou seja, as doenças evoluem para a cura. Cabe ao médico não atrapalhar”.

Convenhamos, as sessões de magnetismo do Doutor Pachequinho não atrapalham. Em última instância, funcionam como placebo.

Pachequinho abusa em suas condutas, na esperança que esse princípio hipocrático continue em vigor. É o que vem salvando Pachequinho.

Do ponto de vista econômico, Pachequinho fez um bom casamento. Hoje é um homem rico. Investiu em fazendas e passou a plantar milho. Já pensa em entrar na política.

As bobinas eletro magnéticas do Doutor Pachequinho, continuam eficientes caça-níqueis.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

sexta-feira, 29 de março de 2024

GENTE SERGIPANA - SEU NORONHA


 Gente Sergipana - Seu Noronha.
(por Antonio Samarone)

Numa sociedade de bárbaros, Seu Noronha foi um gentleman.
Um homem fino, amante dos saraus e soirées dançantes em sua residência, geralmente aos domingos. Noronha nunca teve inimigos.

Um conciliador!

Conta-se que houve uma rixa violenta entre dois comerciantes em Itabaiana. O primeiro, contou a sua versão a Noronha, e ele deu razão: “você está certo!” Minutos depois, o segundo briguento contou a versão dele, Noronha deu razão ao segundo: “você está certo!”

Dona Teonila, a esposa de Noronha, assistiu aquela cena intrigada. “Pera aí, Noronha, você deu razão aos dois na mesma causa, é muita incoerência de sua parte.” Noronha respondeu: “você está certa!”

Esperidião Noronha nasceu em Itabaiana, a 24/10/1874. Filho de Seu Benvindo e Dona Antônia. Foi comerciante, sentou praça no 28º BC, e levou o primeiro caminhão para Itabaiana, por volta de 1928.

Com a criação da Estrada de Rodagem para Aracaju, o caminhão de Seu Noronha, fazia linha regular para Laranjeiras.

A chegada do caminhão em Itabaiana, pelas mãos de Seu Noronha, se aproxima dos cem anos. Foi ele que iniciou a saga da Capital Nacional dos Caminhões.

Noronha foi músico, compositor, maestro da Filarmônica Santo Antonio, a filarmônica dos Cabaús, criada por Batista Itajahy, em 1904. Essa Filarmônica durou até 1925.

Noronha retornou a centenária Filarmônica Nossa Senhora da Conceição, a filarmônica tida como dos Pebas. Essa desavença política em Itabaiana, Pebas X Cabaús, vem de longe.

Esperidião foi político, exercendo o mandato de vereador de Itabaiana por três vezes e de deputado constituinte pela UDN, em 1947, eleito com 924 votos.

Esperidião Noronha faleceu em 24 de dezembro de 1956, quase cego, aos 82 anos. Está sepultado no Cemitério de Santo Antonio e Almas de Itabaiana.

Antonio Samarone – médico sanitarista.

PS: a foto foi restaurada pelo artista Marlon Delano.

sábado, 23 de março de 2024

GENTE SERGIPANA - EULINA NUNES.



 Gente Sergipana – Eulina Nunes.
(por Antonio Samarone)

Itabaiana tem meia dúzia de intelectuais vivendo pelo mundo. Um deles, Luciano de Oliveirinha, mora no Recife. Me mandou uma ordem pelo WhatsApp: escreva sobre Eulina Nunes, senão eu peço a Vladimir.

Fazer o quê?

Eulina Nunes nasceu em primeiro de dezembro de 1908, no povoado Mocambo, Frei Paulo. Filha de Tonho de Zé Nunes e Dona Maria Santiago Nunes.

Logo cedo vieram para Itabaiana. Dona Eulina foi uma líder determinada e se criou em Itabaiana. Professora de corte e costura e culinária. Enviuvou cedo, criando os três filhos: Lutero, Paulo e Marinalva.

Com o Pai, fundou primeira igreja evangélica presbiteriana de Itabaiana.

Aos domingos pela manhã, quando eu voltava da missa, passava na calçada da Igreja presbiteriana. Ficava na ponta dos pés para olhar pela janela. Naquele tempo, os Crentes era gente bem comportada, com roupas austeras, e conduta exemplar.

Gente, eu simpatizava com os Crentes da Igreja de Dona Eulina.

Mamãe dizia: esses são tementes a Deus, gente religiosa, que conhece a bíblia. No final da vida, mamãe virou Crente.

Dona Eulina tinha a fama de ter enfrentado Euclides Paes Mendonça, o poderoso Coronel. No início da década de 1960, Euclides começou a alargar as ruas, abrir avenidas, rasgar Itabaiana de ponta a ponta. Não respeitava a propriedade de ninguém.

Dona Eulina morava num sítio, perto do Colégio das Freiras. Uma das futuras avenidas cortaria o seu sítio no meio. Eulina fincou o pé: “a minha cerca você não derruba”! E não derrubou.

Numa cidade onde o catolicismo romano dominava, os Crentes não passavam de uma meia dúzia.

Só uma igreja (foto), que um dia desses, pela localização privilegiada, foi derrubada para virar galeria comercial. Um crime contra o patrimônio histórico, que Itabaiana assistiu num cúmplice silêncio.

Dona Eulina manteve a sua fé com altivez, até a sua morte, em 03 de janeiro de 1998, aos 90 anos. Os Crentes eram poucos, mais gente digna, exemplar, que vivia a luz do evangelho.

Antonio Samarone.