quinta-feira, 30 de maio de 2024
DO SACERDÓCIO AO NEGÓCIO.
Do Sacerdócio ao negócio!
Por Antonio Samarone.
A medicina perdeu os rumos do humanismo. Aliviar o sofrimento, a sua base ética, dissipou-se nas leis do mercado. Resolvi revisitar os fundadores da chamada medicina científica, para saber se o erro estava na origem.
Fui a Alemanha do século XIX.
Com a publicação, em 1856, do livro “Patologia Celular”, do cientista alemão Rudolf Virchow, estava consolidado o paradigma celular. O paradigma humoral (Hipócrates – Galeno), seria superado. Estavam estabelecidas as bases da medicina moderna.
Contudo, Virchow nunca deixou de transmitir aos seus alunos, a velha concepção hipocrática da natureza curadora. Em condições normais, as doenças evoluem para cura. Talvez seja esse princípio o responsável por boa parte da fama dos médicos.
A natureza cura, tendo os médicos como assistentes. E os médicos precisam compreender os doentes na totalidade. A passagem dos médicos de “artistas da cura” para “cientistas”, se deu com grande perda para os doentes.
O paradigma celular estabeleceu que as doenças são entidades definidas por um conjunto de sintomas e sinais (clínica), relacionadas com lesões anatômicas. A doença é a vida em condições anormais.
Para conhecer a doença é preciso abrir os cadáveres. Entretanto, havendo discordância entre a clínica e a patologia, a clínica seria soberana.
A essência patológica é a célula doente, disse Virchow, e a doença não tem outra unidade distinta da unidade da vida, da qual ela é um tipo particular, um tipo de célula viva comum. Isso deu novos rumos a medicina. “Omnis cellula e cellula” – toda a célula deriva de outra célula.
A nova ciência médica, do final do século XIX, seguiria três caminhos: exame dos doentes na clínica (anamnese e exame físico), com o auxílio de todos os meios da física e da química; experimentos nos testes com animais e; o estudo dos cadáveres com o bisturi, o microscópio e os reagentes.
O pensamento do Velho Morgagni, sobre a localização das doenças no corpo, avançou dos órgãos, em direção aos tecidos, e desses, em direção às células. Nenhum médico poderia pensar numa doença, sem a localizar no organismo. Os médicos bem formados, seguiam essas crenças.
Hoje, o paradigma é outro.
Claro, a bacteriologia de Pasteur, também pesou muito na formação da medicina chamada de científica. Mas não é assunto dessa conversa.
Rudolf Virchow nasceu na Pomerânia, em 1821. Naturalista, médico, cirurgião geral do Hospital Charité, em Berlim. Depois assumiu a cadeira de patologia. Criou a revista “Die medicinische Reform”, A Reforma médica, de repercussão mundial, sobretudo na reformulação dos cursos de medicina.
Ele também coordenou a publicação do “Arquivo de Anatomia Patológica, Fisiologia e Medicina Clínica” – 169 edições, (Virchows Archiv), que se tornou uma fonte preciosas de pesquisa histórica, sobre a formação da medicina moderna.
Virchow ajudou no combate à epidemia de tifo exantemático, na alta Silésia. Apaixonou-se pela medicina social. Foi o maior sanitarista alemão, do século XIX, e fundador da medicina social. Fez o saneamento de Berlim, tornando-a uma cidade saudável. Tornou a higiene pública parte do bem-estar.
Virchow iniciou na Alemanha a luta por uma Assistência Médica pública e defendeu, pela primeira vez, a saúde como um direito (1849). A assistência à saúde sairia do campo da misericórdia cristã para as políticas sociais. No século XXI, tornou-se uma atividade do mercado.
Virchow foi fundador e membro atuante da Sociedade Alemã de Antropologia, com 1.180 trabalhos publicados, sobretudo de antropologia física. Realizou trabalhos na área de arqueologia.
Admirador de Darwin, mas se opôs firmemente ao uso inadequado da teoria de evolução, sobretudo ao darwinismo social de Ernst Haeckel.
Virchow foi o principal defensor de uma nova política cultural na Alemanha, opondo-se a visão da Igreja romana. O Papa Pio IX, publicou, em 1846, a encíclica “Quanta cura”, que condenava o naturalismo, o racionalismo e o panteísmo.
A visão cultural de Virchow, está resumida em seu conhecido discurso sobre Goethe (1861). Nesse discurso, Virchow defendeu que as leis obrigatórias para os homens devem ser buscadas na natureza e na arte, longe da arbitrariedade dos poetas medíocres e da tutela dos beatos. Ele consolidou a sua visão da cultura, quando assumiu o reitorado da Universidade de Berlim, com um discurso intitulado “Apreender e Pesquisar”.
Em seu aniversário dos 80 anos, ele declarou aos amigos: “Fiz objeto dos meus estudos a medicina e as ciências naturais; a antropologia e a arqueologia; ocasionalmente também a literatura, a filosofia, a política e as condições sociais.”
Virchow ocupou uma cadeira no Parlamento Alemão (1880 a 1893), pelo Partido Progressista; sempre em franca oposição a Otto von Bismarck. A polêmica entre eles, era um passeio sobre a cultura alemã.
O homem é o que fascinava Virchow, tanto como médico, quanto como naturalista. Ele concebeu a medicina como uma antropologia médica. A medicina moderna nasceu com grandes sonhos. Não merecia terminar na banca do comércio.
É evidente que muita coisa do pensamento de Virchow sobre a ciência foram superados. Os métodos e a filosofia da ciência passaram por transformações.
Famoso em todo o mundo, Virchow morreu em Berlim, em 1902, aos 81 anos. Foi arremessado de um bonde, numa rua de Berlim (Leipziger St.). O velho nunca se recuperou da fratura de fêmur. Foi a primeira grande morte no trânsito, do século XX.
O conceito da medicina como uma ciência social, como antropologia médica, elaborado por ele, foi banido dos cursos de medicina. A medicina (com uma fina capa de ciência) virou uma atividade econômica. Foi do Sacerdócio ao Negócio!
Antonio Samarone – médico sanitarista.
quarta-feira, 29 de maio de 2024
A ARTE, NASCE DO INCONSCIENTE.
A arte, nasce no inconsciente?
(por Antonio Samarone)
Fui questionado porque a primeira exposição de artes plásticas de Itabaiana, com artistas locais, tendo Mário Britto como curador, recebeu o nome de Cidade dos Milagres. Respondi com um verso de Caetano: “quem é ateu e viu milagres como eu.”
Vou tentar explicar o inexplicável, o que eu entendo por milagres. O senso comum acredita que só a fé, justifica os milagres. Acho que não! Vamos lá:
A cultura de uma comunidade é o complexo de convicções, usos populares, hábitos, técnicas, métodos econômicos, leis, moral, crenças religiosas, estruturas políticas e todos os modos de vida desenvolvidos durante séculos.
“Cultura procede de culto. O culto é uma reunião para adoração, isto é, uma tentativa das pessoas de comungar com um poder transcendente.” – Russel Kirk.
Portanto, o papel da religiosidade na evolução cultural é preponderante. O que move com mais força uma sociedade é a religiosidade e a moral. Não estou subestimando o papel do econômico, como defende o marxismo.
Acho que durante a revolução industrial e o nascimento do capitalismo, quando Marx escreveu o Capital, ele estava certo. O impulso principal de mudanças era o econômico.
Não acredito que essa lei seja universal, para todos os lugares, em todos os tempos.
Vou apelar para um conceito de Carl Jung: toda a civilização possui um inconsciente coletivo. Valores que circulam, são transmitidos de geração a geração, e que determinam o modo de vida. Certas crenças e valores, chamadas de arquétipos, conduzem silenciosamente a marcha cultural.
O arquétipo da religiosidade é estruturante da sociedade Itabaianense, que completa, em 2025, trezentos e cinquenta anos de fundada, pelos portugueses. Nesse tempo, os milagres fizeram parte do cotidiano.
A natureza se reproduz com certas doses de erros, de eventos destoantes das regras. Se assim não fosse, a evolução seria impossível. As mutações genéticas, necessárias a evolução, são anomalias da reprodução celular.
Esses eventos fora da curva normal, também compõem a realidade. A improbabilidade de que um evento aconteça é apenas estatística, ele pode acontecer naturalmente, como exceção.
Quem desconhece essa lei natural, o princípio da incerteza, atribuirá essa exceção a um milagre. Portanto, os milagres acontecem naturalmente.
Atribuí-los a uma força sobrenatural, ao acaso, a magia ou aos deuses, fica por conta de cada um, de cada cultura.
Algumas religiões se valem dos milagres, para reforçar os laços com o sagrado, outras, apresentam os milagres como regra, que acontecem a todo momento e podem ser retransmitidos ao vivo, pela TV. Nesses casos, são fraudes.
Portanto, os milagres são eventos naturais, ou quem sabe, até sobrenaturais. As dúvidas sobre a sua existência, passam pelo visão apressada do método científico.
O nome da Exposição, “Itabaiana, cidade dos milagres”, não deveria gerar nenhum espanto.
Antonio Samarone. (médico sanitarista)
terça-feira, 28 de maio de 2024
A HISTÓRIA SE REPETE, ANDA EM CÍRCULOS
A história se repete, anda em círculos.
(por Antonio Samarone)
Euclides Paes Mendonça (UDN) - (foto), mandou e desmandou em Itabaiana, por 12 anos. Se tornou um líder estadual. Nesse tempo, os seus negócios prosperaram. Ele chegou à prefeitura de Itabaiana em 1950, derrotando Manuel Teles, o chefe do PSD.
Em sua sucessão à prefeitura de Itabaiana (1954), quem ele escolhesse como candidato, estava eleito. Cabia a ele não errar, e escolher um ambicioso político, para lhe fazer sombra.
Mesmo sendo Jason Correia, ex Prefeito, o candidato do PSD, um nome forte, o favorito seria o candidato indicado por Euclides. Vários pretendentes se ofereceram, inclusive o Deputado Filadelfo Dorea, filho de Othoniel da Fonseca Dorea (Dorinha), ex chefe político em Itabaiana, na década de 1930; Wilson Noronha, filho de Esperidião Noronha e Etelvino Mendonça.
Euclides pensou nos riscos de traição. Precavido, indicou como o seu candidato a Prefeito, em 1954, o contador de sua empresa, dono de cartório, homem sem ambição política: Serapião Antonio de Goes. Ele acertou!
Serapião foi fiel até o último dia. Em 1958, Euclides retornou a Prefeitura, para um segundo mandato, enfrentando Dr. Pedro Garcia Moreno, pelo PSD.
Faz parte do talento dos líderes políticos, saber escolher os aliados e os inimigos.
Em 1962, Euclides elegeu José Sizinio de Almeida, para a Prefeitura de Itabaiana, numa eleição disputada contra Zeca do Crediário, um conceituado comerciante. O PSD, sem perspectivas de vitória, vai buscar um candidato fora da política. Parece que os fatos se repetem.
Vladimir Carvalho conta em seu livro, que nessa eleição, Euclides trouxe de fora, do Rio de Janeiro, um locutor para os serviços de auto falante da UDN. A fera chamava-se Lacerda, o Xingador. Ele é contratado com liberdade de atacar quem quisesse, do jeito que entendesse.
O Xingador Lacerda, com voz possante e empostada, espalhou o terror pelas ruas e becos de Itabaiana. O Xingador, iniciava a sua locução sempre com um bordão: “Serviço de Amplificação da UDN, anunciando a candidatura de Leandro Maciel - Ninguém se perde na volta”, uma referência ao retorno de Leandro Maciel ao Governo do Estado.
Nesse Pleito, Euclides Paes Mendonça foi eleito para a Câmara Federal. Em 08 de agosto de 1963, ele foi assassinado em Praça Pública, com o filho Antonio de Oliveira Mendonça.
Não se sabe se o desbocado Lacerda, ajudou ou atrapalhou a eleição da UDN, em Itabaiana. Findo o pleito, se desconhece o paradeiro desse xingador de aluguel.
A política mudou pouco, nos últimos vinte séculos.
Antonio Samarone – Médico Sanitarista.
A RAZÃO DOS DESATINADOS
A razão dos Desatinados
(por Antonio Samarone)
É a indústria farmacêutica que detém a verdade da psiquiatria.
Os turistas endinheirados que visitam Veneza, podem desfrutar de um Paraíso: um resort cinco estrelas, na Ilha de São Clemente. O hotel é o antigo palácio de São Clemente, onde, até 1992, funcionou o Hospício de Veneza para mulheres loucas. Foi ali, que Mussolini enclausurou a sua amante, Ida Dalser.
O confinamento em massa dos loucos foi a regra a partir de meados do século XIX. O Adauto Botelho, em Aracaju, chegou a 600 internos, submetidos a solitária, camisa de força e ao choque elétrico.
Esse grande confinamento decorreu da transformação dos loucos em doentes mentais. Essa transformação está bem analisada, em um clássico de Foucault, a História da Loucura, publicado em 1970.
Os grandes manicômios no Brasil, não tiveram o mesmo destino luxuoso do hospício de São Clemente. Em Sergipe, os manicômios transformaram-se em prisões e órgãos de segurança. Mas acabaram!
A reforma psiquiátrica no Brasil, conduzida por um discurso humanitário, teve como produto final uma psiquiatria de mercado. Muita gente bem intencionada embarcou. O resultado, entretanto, foi a redução da psiquiatria ao saber farmacológico. Muitas vezes, um saber subordinado a interesses econômicos.
O esvaziamento dos manicômios no mundo, coincidiu com a introdução dos psicotrópicos. Drogas com efeitos sobre o comportamento mental. Os tranquilizantes reduziram a violência física no tratamento dos insanos. A indústria farmacêutica não precisava dos manicômios, para implementar o consumo.
A clorpromazina, a primeira droga psicotrópica, teve o seu uso aprovado nos USA, em 1954. Treze anos depois, já era administrada a mais de 2 milhões de pessoas. A introdução de drogas farmacêuticas no tratamento das psicoses, neuroses e esquizofrenia, mudaram a psiquiatria.
Houve uma revolução tecnológica na psiquiatria, a revolução dos remédios.
Os hospitais de saúde mental foram considerados instituições condenadas. O delírio reformador foi aos extremos de se negar a existência da loucura. Tudo era ideológico. Franco Basaglia foi o pai dessa antipsiquiatria.
Para nossa desgraça, a Reforma Psiquiátrica nos levou ao lado oposto: todos somos portadores de transtornos mentais. Ninguém escapa de um tranquilizante ou pelo menos um sonífero. Os mais sofisticados, preferem os tranquilizantes naturais e a meditação.
O número de dependentes em drogas psiquiátrica é alarmante. O doping tornou-se necessário, para enfrentarmos a sociedade pós-moderna. Estamos cercados!
O raciocínio atual do psiquiatra, em sua anamnese, não busca descobrir a origem ou as causas do mal-estar dos pacientes. Busca-se qual o medicamento pode aliviar o sofrimento relatado.
A medicina moderna foi centrada na anatomia patologia e na patologia celular. As doenças eram desvendadas com a abertura dos cadáveres, com as necropsias e autopsias. Com as lâminas da patologia. Hoje, o paradigma dominante das doenças é molecular. Entretanto, na prática, ainda prevalece o paradigma celular.
Como decidir quem é louco, pelos paradigmas médicos? Nenhum Raios-x, ressonância magnética, exame de sangue ou descoberta laboratorial oferece qualquer auxílio. As neurociências e a genética ainda não encontraram a etiologia das doenças mentais. A consciência humana não se limita as leis físicos-químicas.
As imagens de ressonância magnética funcional, mostram um mapa colorido do cérebro. Longe da etiopatogenia da loucura. Já se sabe, a nossa biologia é social. O reducionismo biológico é um engano. As raízes da loucura estão fora do nosso corpo.
Na década de 1970, a American Psychiatric Association resolveu reclassificar e padronizar os diagnósticos. Abandonou os esforços para o entendimento da mente, deixou de procurar as raízes do sofrimento. Tiraram o retrato de Freud da parede, e retornaram a uma medicina classificatória, dos séculos XVII e XVIII. Voltaram a medicina das espécies.
As doenças mentais, para evitar aborrecimentos científicos, foram transformados em transtornos mentais, e diagnosticadas pelo conjunto de sintomas apresentados.
Em 2013, o DSM V já estava circulando. Na época, foi considerado por alguns cientistas, como um pesadelo científico. Depois calaram. Entretanto, nunca conseguiram substituir essa psiquiatria descritiva, por outra centrada em diagnósticos construídos sobre fundações biológicas.
Os resultados da nova classificação (DSM) foram promissores: explodiu uma epidemia de autismo, condição clínica até então rara; e a hiperatividade, hoje denominada de TDAH, entrou na ordem do dia.
A indústria farmacêutica precisava para aprovação de novas drogas, de doentes classificados com segurança, porém com extrema flexibilidade. Foi criado o Manual diagnóstico estatístico de transtornos mentais (DSM). Estava fundada a nova psiquiatria.
Essa nova classificação mudou a prática da psiquiatria. Deu uma roupagem material ao discurso. Mesmo causando dependência e não enfrentando as causas, os medicamentos psiquiátricos aliviam parte do sofrimento. A saída química, já tinha sido abordada por Freud, em seu Mal Estar da Civilização.
Na verdade, criou-se um próspero mercado de sofrimento mental. Ninguém escapa. A pós-modernidade, em sua ideologia do empreendedorismo, transferiu para os indivíduos a culpa por qualquer insucesso. O fracasso foi psicologizado.
Com a nova psiquiatria, os antipsicóticos, ansiolíticos e antidepressivos passaram a figurar na lista dos medicamentos mais lucrativos do mundo.
Desde o final do século XIX, a psiquiatria procurava as alterações no cérebro, das doenças mentais. A psiquiatria buscava a relação da mente com o meio social, chegou-se a sonhar com uma psiquiatria preventiva. Com uma higiene mental.
A nova psiquiatria, para felicidade da indústria farmacêutica, reduziu o sofrimento mental a transtornos bioquímicos dos neurotransmissores, a defeitos da dopamina ou escassez da serotonina. Tudo isso, com uma capa científica.
As tradicionais formas de loucura continuam tão misteriosas como antes. Entretanto, a influência do modo de vida, das relações sociais, do modo de produção, da economia, da cultura e da religiosidade nunca foram tão evidentes.
As verdades científicas da psiquiatria, em boa parte produzidas ou financiadas pela indústria farmacêutica, não desvelaram a profundidade da loucura. Pelo contrário, a ocultaram.
Quais os efeitos colaterais desse “boom” do mercado de psicotrópicos. As sequelas, são tratadas com outros medicamentos, potencializando o consumo.
A loucura continua um enigma.
Antonio Samarone (médico sanitarista)
domingo, 26 de maio de 2024
AS VACINAS E OS CORONÉIS
As vacinas e os Coronéis.
(por Antonio Samarone)
Os primeiros casos de poliomielite em Sergipe apareceram em 1946. Os surtos se intensificam. A principal sequela da doença é a paralisia dos membros inferiores. O povo, amedrontado, chamava a doença de paralisia infantil.
Em 1962, o Governo Luiz Garcia promoveu uma campanha de vacinação em massa, em Aracaju. Algumas cidades do interior participaram. A vacina usada foi a Sabin oral. Foram vacinadas 30.050 crianças, com menos de sete anos.
Em Itabaiana, Euclides Paes Mendonça, o chefe político, colocou as marinetes á disposição, levando a meninada para a vacinação em Aracaju. Eu fui barrado na porta da marinete de Manezinho Clemente. O motorista me achou crescido demais, para só ter sete anos.
Mamãe reagiu bravamente e procurou Euclides, o manda chuva, para exigir o seu direito de vacinar o filho. Euclides no início também achou que eu tinha mais de 7 anos. Mamãe falava alto e insistiu. Ela tinha pensado em trazer a certidão de nascimento, mas não a achou, não sabia onde tinha guardado. Na verdade eu sou de dezembro de 1954, só completaria 8 anos em dezembro. Mas era um vara pau. No final, Euclides autorizou, e embarcamos.
Mamãe era disposta, nunca baixou a cabeça para as adversidades.
Foi a única vez que eu vi o Coronel Euclides Paes Mendonça em carne e osso, ao vivo. Ele foi assassinado no ano seguinte. Fiquei com a impressão que o homem era um gigante de bochechas róseas, meio desengonçado, um imbatível. A minha família votava nos Pebas e ele era Cabaú.
Eu não tenho o direito de ser negacionista e recusar vacinas. Seria uma traição a mamãe.
Mamãe me vestiu com calças curtas, suspensórios, tamanco e um boné de couro. Eu morrendo de vergonha daqueles trajes rurais. Os mais novos não sabem, não existiam essas sandálias tipo havaianas. As sandálias de couro eram para os ricos. Sapatos, nem pensar. As criança pobres vestiam tamancos de gameleira, com uma tira de sola. Ou pés descalços.
Lembro-me os detalhes dessa viagem para a vacinação. As marinetes de Itabaiana entravam na Capital pela Avenida Maranhão. Quando passou perto do Campo de Aviação, alguém gritou: olhem um avião. Num impulso, botei a cabeça para fora, pela janela, e o vento carregou o meu de chapéu couro. Ouvi a zoada do avião e o chapéu voando. Não foi dessa vez. Só conheceria um avião de perto, muito tempo depois.
Mamãe se danou com o prejuízo do chapéu e eu adorei por ter me livrado daquele traje de tabaréu. Os tamancos ficaram. Toc.toc.toc.
Ao chegarmos ao Prédio da Antiga LBA, eu fiquei encantado com tanta boniteza. Só fiquei decepcionado com a rapidez da vacinação, eu esperava demorar mais. Não me lembro do gosto da gotinha.
Um dia desses, conversando com Ivo de Seu Oswaldo, de Dona Iaiázinha, ele me contou que também veio nessa caravana, da primeira vacinação em massa de Sergipe. Tive a certeza que a minha memória estava certa.
Antonio Samarone. Médico sanitarista.
quinta-feira, 23 de maio de 2024
POR ONDE ANDAM OS MARRANOS?
(por Antonio Samarone)
No início do século XVI, em Portugal, os judeus viviam livremente, sem perseguições. Até o momento que D. Manuel resolveu se casar com a Infanta Isabel, filhas dos Reis Católicos, da Espanha.
Houve uma condição: a nova Rainha não poderia viver com os infiéis. Por outro lado, Portugal precisava dos judeus.
Aqui nasceu o “jeitinho”: D. Manuel publicou um Édito de expulsão dos judeus (1497), e no dia marcado para o embarque, o porto lotado para o embarque, os navios esperando. Ao mesmo tempo, o Rei mandou ao local de embarque, um batalhão de padres e frades, para batizar quem quisesse escapar da expulsão.
Portugal resolveu acabar com os judeus, com um batismo cristão. Sendo batizados, os judeus passariam a ser Cristão Novos, e se livrariam da expulsão. Entretanto, com o massacre de 1606, os judeus precisaram fugir de Portugal, e o Brasil foi um dos destinos.
O jeitinho brasileiro, na verdade, é mais uma herança portuguesa.
E os marranos em Itabaiana? Se fala muito, mas os pesquisadores de arquivos, desmentem. Não encontram judeus em Itabaiana.
A história oral aponta noutra direção. As tradições, os costumes, a vocação para o comércio, os nomes das pessoas, as crenças, apontam para a presença dos Sefarditas em Itabaiana.
Enterrar os mortos enrolados em mortalhas, a estrela de seis pontas nos chapéus, gavetas na mesa de jantar, não contar estrelas, são lembranças judaicas. Não tenho documentos a citar, não se trata disso.
O meu ascendente, João José de Oliveira, chegou ao Brasil em meados do Século XIX. A chegada da Família Real (1910), abriu as portas para uma nova onda de imigração de sefarditas. João José descende da família Abrams, batizados em Lisboa, no momento da expulsão (1497).
João José chegou a Matiapoan, em meados do século XIX. Entre os seus descendentes, os nomes judaicos são frequentes: Benjamim, Davi, Moises, Elias, Josué...
O nome João José de Oliveira é tradicional, entre os cristãos novos. O ferreiro João José sabia ler, escrever e contar, numa época de analfabetos. Sabe-se, que entre os judeus não existia o analfabetismo.
Não tenho dúvidas: em criança eu era advertido a não apontar estrelas, pois gerava uma verruga na ponta do dedo. Um medo dos Cristãos Novos. Na casa do meu avô Antonio Francisco de Oliveira, a mesa de jantar possuía gavetas.
Por aqui, ser chamado de “judeus” é um elogio.
O chapéu de couro é um solidéu, um kipá disfarçada.
Eu sei, essas suspeitas de origem comum, já podem ser esclarecidas com o estudo do DNA mitocondrial materno. Estou pensando em buscar essas provas.
Você pode estar perguntando porque esse interesse pelas origens judaicas, agora, que Israel está cometendo um genocídio em Gaza. Primeiro, os Sionistas, comandados por Netanyaru, não podem ser confundidos com o judaísmo. Eles são uma parte.
Concluindo: a difundida suspeita de uma influência judaica nas habilidades comerciais dos ceboleiros, pode não ter ainda comprovação histórica. Entretanto, as evidências são fortes. Os estudos existentes são limitados, pela escassez de fontes documentais.
Antonio Samarone. Médico Sanitarista.
sábado, 18 de maio de 2024
AS LUZES DE MEDINA
As luzes de Medina...
Por Antonio Samarone.
A tragédia política de 1906, em Sergipe, destoou da tradicional e modorrenta vida política do Estado. Finalmente, um fato para enfeitar os discursos acadêmicos.
Fausto Cardoso, político eleito em pleno acordo com as oligarquias, se rebelou, quis fazer uma revolução em Sergipe. Tentou invadir o Palácio do Governo, sem sucesso, sendo contido pelas forças de segurança. Morreu nas escadarias.
Dias depois, no Rio de Janeiro, o Senador Olympio Campos, líder político de Sergipe, padre, monarquista, conservador, foi assassinado pelos filhos de Fausto Cardoso, em vingança a morte do pai. O laudo cadavérico do Monsenhor, constatou quatro tiros nas costas, um na cabeça, e um ferimento de faca nas costas, de três centímetros.
Um cenário perfeito para se montar uma narrativa histórica: Fausto, um líder jacobino, tenta invadir o palácio em busca de liberdade (tomar o poder), e é assassinado pelos conservadores. Na versão dominante, conservadores liderados pelo Padre Olympio Campos.
Essa versão embasou teses, encheu livros de histórias, é ensinada nas escolas e foi proclamada em Praça Pública. No velho maniqueísmo: Fausto Cardoso era o progresso e Olympio Campos o atraso.
Sergipe gravou a tragédia denominando a Praça do Palácio de Fausto Cardoso e a Praça da Catedral de Olímpio Campos. Um detalhe ideológico: entronizaram a estátua do monsenhor na Praça, de costas para a Catedral e de frente para os fundos do Palácio. Nada é inocente.
O heroísmo de Fausto Cardoso não foi exaltado apenas pelos historiadores avermelhados. O ex Senador, médico, o competente Francisco Rollemberg, conservador, insuspeito de qualquer esquerdismo, organizou e escreveu uma apresentação ao alentado Perfil de Fausto Cardoso, publicado em 1987, pela Câmara dos Deputados, com 1.297 páginas.
Numa passagem da introdução ao Perfil de Fausto, Rollemberg cita Rodrigo Andrada: “A bancada mais brilhante dentre os deputados da 4ª Legislatura fora mandada por Sergipe, que com quatro representantes apenas, dispunha de nomes ilustres como os de Sílvio Romero, Fausto Cardoso e Rodrigues Dória”. O quarto nome era Joviniano de Carvalho, não menos competente.
Não foi bem assim! Nos mostra o belo livro “As Exéquias do Monsenhor Olympio Campos”, da pesquisadora Ana Medina e do professor Monteiro, que acaba de ser publicado.
Ana Medina declara, logo na introdução: “Não tenho a intenção de acender velhos ódios, querelas de faustimos e olimpismos”. Não tenha esse receio, Ana, atualmente, os ódios acesos são outros. E estão bem acesos.
Eu suponho a força desse ódio ancestral dos sergipanos!
Visitei o professor Walter Cardoso, em seu leito de morte. Ele, lúcido, me fez uma observação: “Não é verdade que as minhas tias negaram um copo de água a Fausto, quando ele, agonizante, passou em nossa porta.” As tias do Dr. Walter moravam na esquina da Travessa José de Faro com a Rua Pacatuba, onde hoje funciona uma agência da Caixa Econômica. No caminho do Palácio.
Ana Medina defende o Monsenhor, das injúrias e invencionices, cabíveis, só ideologicamente, na alma de um conservador. Para tornar Fausto Herói tudo foi permitido. Até esquecer o padre.
Olympio Campos foi um idealista: entrou na política para defender o ensino religioso, atacado pelos republicanos.
O livro de Medina revela um detalhe que eu desconhecia: nos estertores da morte, Fausto Cardoso, balbuciou uma encomenda: “mataram-me, os meus filhos me vingarão”. Não se nega a última vontade de um pai.
Medina exalta o monsenhor, reascendendo a nossa memória.
Os restos mortais do monsenhor estão na Catedral do Aracaju. Na lousa original tinha o seguinte epitáfio: “Ajoelhai-vos, sergipanos. Aqui jaz o maior sergipano do seu tempo”! Claro, com as reformas, hoje resta um mármore branco.
O livro de Medina não trata da política, é um livro sobre as exéquias, o ritual, as homenagens, os tributos, um livro cheio de poesia. Eu, num vício incorrigível, é que fico metendo a política.
Só no final, a partir da pág. 155, é que a política entra em pauta no livro. Pelo estilo da escrita, talvez seja a parte do professor Monteiro, do Lagarto. Escrito de forma jornalística, sem grandes novidades. Nada que não se tenha dito antes. Cheio de citações ecléticas. Porém, não compromete.
A novidade do livro são as memórias das exéquias. Palmas para Ana Medina, mesmo parente do Monsenhor, narra com leveza e equidistância. Escreve com o coração.
Antonio Samarone (médico sanitarista)
terça-feira, 14 de maio de 2024
A DEUSA FORTUNA E OS JOGOS DE AZAR
A deusa fortuna e os jogos de azar...
(por Antonio Samarone)
“Quem é ateu e viu milagres como eu/ Sabe que os deuses sem Deus/ Não cessam de brotar, nem cansam de esperar...” Caetano Veloso.
Sigmund Freud descobriu o inconsciente. O psiquiatra suíço Carl Jung foi mais longe, descobriu as profundezas do inconsciente coletivo e os seus arquétipos (comportamentos e valores do passado que pesam no presente).
Observo dois arquétipos poderosos na sociedade itabaianista: os arquétipos religioso e guerreiro. Por aqui, se acredita facilmente em milagres e a competição interpessoal é acirrada, por qualquer besteira.
Jung descreve um arquétipo, o Trickster, que eu não sei a tradução, que trata das travessuras, brincadeiras, humor e trapaças. Ou seja, um arquétipo que trata do jogo de azar, do carteado, da roleta, do pio, do jogo do bicho. Acho que em Itabaiana esse arquétipo é enraizado.
Por lá, se aposta em quase tudo. Os viciados em jogo são abundantes. Cresci, ouvindo falar de cafuas poderosas, muito bem frequentadas. Mesmo nas feirinhas de Natal o jogo de azar corria solto. Mesas de carteados e roletas dominavam a metade da festa.
Para as famílias, existiam as roletas que sorteavam goiabadas e o original “jogo do preá”. Um mesa grande arrodeada de tocas numeradas, onde se soltava o pobre animal no meio e a turba começava a tanger o bichinho para a toca de preferência. Se apostava em qual toca o preá iria se esconder, depois da algazarra humana.
Eu morria de pena do preá!
A alfaiataria de Seu Lau, na Praça de Santa Cruz, era uma cafua disfarçada. Lá, ninguém encomendava um terno. O jogo de baralho virava a noite e rasgava as madrugadas.
Confirmei a força do Trickster, o arquétipo do jogo e da trapaça, ao passar ontem na praça, onde um carteado (a brinca) estava em pleno funcionamento. Cercado de perus. (veja a foto).
O jogo de azar é um elemento cultural forte em Itabaiana. O jogo do bicho funciona há cem anos, ininterruptos, com os mesmos banqueiros.
Atualmente, os jogos de azar dominam o Brasil. A Caixa tem umas trinta loterias, onde as chances dos que arriscam são próximas a zero.
Os jogos baseados nos esportes (BET isso, BET aquilo) comandam o futebol brasileiro: os clubes, as mídias e a CBF. O dono do Botafogo acha que comandam também a arbitragem. Acho um exagero.
Para mim, os jogos de azar são todos de “cartas marcadas”, os perdedores e os ganhadores são sempre os mesmos, sempre, a deusa fortuna (sorte) não se mete.
Antonio Samarone – médico sanitarista.
domingo, 12 de maio de 2024
NINGUÉM ESCAPA.
Ninguém escapa!
(por Antonio Samarone)
Germano, 70 anos, anda adoentado. Uma doença que se arrasta vagarosamente. Já bateu as portas de consultórios afamados. Nada! Ninguém descobriu a patologia. Chegaram a dizer que ele nada tinha, aquilo tudo era psicológico.
Germano é rico, possuidor de uma fortuna que as traças e a ferrugem não consomem. É um rentista do mercado financeiro. Para ele, não existe safra ruim, os rendimentos são sagrados.
O certo, é que Germano tem sofrido. E patologia no grego antigo, “páthos” significa sofrimento. Portanto, a dúvida dos médicos é descabida. Germano está doente!
A queixa é incomum: Germano reclama de dor, ardor e formigamento na sola dos pés. Uma dor que impede a deambulação. Germano anda em cadeira de rodas.
A medicina ilumina-se pelo paradigma celular de Virchow. Os sintomas clínicos devem corresponder as lesões orgânicas internas e/ou aos fenômenos fisiológicos baseados nas leis da físico-química.
Em outras palavras, é uma medicina do corpo. Quando o sofrimento foge a esses preceitos, a medicina se perde. O justo, era a medicina reconhecer as limitações. Entretanto, a medicina atua na lógica do mercado. Predomina o valor de troca, para simplificar, o lucro.
A medicina greco-romana era mais sutil. A doença era um desequilíbrio dos humores. O tratamento visava a homeostasia. Na bíblia, a doença é um mal, uma punição, um castigo, uma desgraça.
Quando o sofrimento possuía alguma valia, a doença era redenção, expiação e purificação. Uma porta para o Paraíso. Claro, a medicina possui recursos para aliviar parte desses sofrimentos, inclusive a dor. Nas UTIs, os pacientes morrem sedados. A medicina suaviza a agonia da morte.
Germano foi a São Paulo, a Meca da saúde, em busca de pôr fim ao sofrimento.
Procurou os herdeiros de Charcot. Bateu na porta de angiologistas, imunologistas, podólogos, quiro praxistas, até de um psiquiatra. Germano teve acesso a tudo o que dinheiro pode comprar. Ao todo, realizou 177 tipos exames, no Albert Einstein.
Entretanto, as dúvidas quanto ao diagnóstico permaneceram.
Uma doutora, pós-graduada em Sorbonne, suspeitou de uma doença nova, inexistente no CID 11. "Germano é portador de “SDQ”. Sei, mas o que peste é isso? A Doutora esclareceu: "Síndrome da Dor Quântica. Uma doença rara, de origem autoimune. Ele é o sexto caso descoberto pela ciência."
Trata-se como? Germano quis saber. A doutora foi direta: ainda não existe tratamento! E acrescentou: a Indústria Farmacêutica não vai se ocupar em produzir um medicamento para seis pessoas.
Germano retornou desenganado. Estabeleceu-se em seu sítio, no altiplano do Zanguê, e vai esperar a “velha dama”, onde nasceu. Na falta de tratamento, ele resolveu aplicar cataplasmas de raspa de cama de sapo, duas vezes ao dia. Pelo sim e pelo não, o formigamento nos pés diminuiu.
Esse cataplasma é citado na farmacopeia dos Jesuítas.
Antonio Samarone – médico sanitarista.
sexta-feira, 10 de maio de 2024
A FÉ, SÓ NÃO REMOVE MONTANHA.
A fé, só não remove montanhas.
(por Antonio Samarone).
Tenho procurado as raízes religiosas de Itapuama. (“Naquela pedra mora alguém, há uma aldeia com gente.” Ita (pedra), Taba (aldeia), oane (alguém).
Em minhas leituras avulsas e despretensiosas, cheguei a um discurso, pronunciado por Maria da Conceição Melo Costa, em sessão solene do Instituto Histórico de Sergipe, em 1º de agosto de 1946.
As lembranças de Conceição:
“Itabaiana das ladainhas pungentes, das trezenas de Santo Antonio, das tradicionais Semanas Santas, acompanhadas pelas vozes firmes de Balbino, de Boanerges e de Antonio Rodrigues.”
“Itabaiana das lentas procissões dos fogaréus, dos místicos penitentes a se flagelarem, às caladas da noite, em época quaresmal.” Eu ainda alcancei...
Depois, Djalma Lobo introduziu o fogaréu em campanhas políticas, aproveitando-se do arquétipo religioso dos Itabaianenses.
“Itabaiana do Cruzeiro do Século. Das peregrinações a Cruz dos Montes, onde a multidão, com a fé dos romeiros de Lourdes, acampava em barracas erguidas à orla da mata umbrosa, iluminada ao perene himeneu dos vaga-lumes.”
“Itabaiana das campônias alegres, rosas nas faces e laços vermelhos nas bastas cabeleiras, cores de baunilha. Sandálias brancas e vestidos de cassa, para as missas do dia.”
Lembrei-me de mamãe, linda mestiça de cabelos pretos e escorridos, que encharcava as faces e as mãos com tapioca, quando ia lavrar a terra. A pele precisava de proteção.
A memória é uma fonte de felicidades. As tristezas o cérebro apaga, ou minimiza.
Antonio Samarone. Médico sanitarista.
terça-feira, 7 de maio de 2024
MEMÓRIA CULTURAL DA VILLA DE SANTO ANTONIO E ALMAS (PINTORES E ESCULTORES)
Memória Cultural da Villa de Santo Antonio e Almas. (Pintores e Escultores).
(por Antonio Samarone)
O competente Mário Brito, curador, galerista e colecionador das artes plásticas em Sergipe, me fez um desafio: “Itabaiana é grande na economia, na música, no futebol, entretanto, nas artes plásticas, só possui dois nomes conhecidos no estado: Melcíades e Zeus.”
Eu discordo, mas preciso provar. Lancei um desafio a Mário Brito: vamos organizar uma exposição em Itabaiana, com artistas locais, sob a sua orientação! Ele topou! Ontem, ocorreu a primeira reunião. A exposição foi marcada entre 03 e 16 de junho, no Shopping Peixoto, na semana da grande festa dos caminhoneiros.
Como será denominada a exposição, Mário indagou? A resposta foi consensual: Itabaiana, a cidade dos milagres.
Por que cidade dos milagres? Claro, faz referência ao milagre que santificou Santa Dulce. Ocorreu na Maternidade São José, em Itabaiana.
Mas não é só isso. Os milagres vem de longe.
Santo Antônio, o padroeiro de Itabaiana, ficou afamado como poderoso taumaturgo, constando oficialmente de sua hagiografia a realização de mais de 50 milagres.
A carreira taumatúrgica que a hagiografia atribuiu a Santo Antônio certamente pesou na sua eleição como santo doméstico e cotidiano no mundo moderno.
Quando Santo Antônio chegou a Itabaiana (1603), já tinha mais 400 anos de Santo. Sentiu-se à vontade. Ele nasceu em Lisboa, em casa situada perto da catedral, hoje santuário, em 15 de agosto de 1.195. Filho de família fidalga.
Santo Antonio não quis ficar na Capela do Valle do Jacarecica (igreja velha). Mesmo sem água, fugia para o Tabuleiro de Ayres da Rocha.
Após idas e vindas, aí se estabeleceu em 1665, como comprova os documentos da Diocese da Bahia, que instituiu a Freguesia de Santo Antonio e Almas de Itabaiana, a segunda de Sergipe.
No Próximo ano (2025), será a comemoração dos 350 anos. Itabaiana vem de longe.
A religiosidade e a fé nos milagres é um arquétipo constituinte da Cultura Itabaianense.
A exposição de Itabaiana, com a curadoria de Mário Brito, vai iluminar o estado com talentos e criatividades.
Antonio Samarone (médico sanitarista)
domingo, 5 de maio de 2024
MEMÓRIA CULTURAL DA VILLA DE SANTO ANTONIO E ALMAS (CALABAR).
Memória Cultural da Villa de Santo Antonio e Almas (Calabar)
(por Antonio Samarone)
Em 1628 e 1629, partiram da Bahia duas expedições à Serra de Itabaiana afim, de encontrar as minas de prata, sendo a última comandada por Domingos Fernandes Calabar.
Domingos Fernandes Calabar, brasileiro, que aderiu aos holandeses quando da ocupação da Capitania de Pernambuco, contribuindo para as vitórias iniciais dos invasores. Prisioneiro dos portugueses em Porto Calvo, em 1635, foi julgado e morto como traidor.
Calabar era um mameluco brasileiro, filho de um fidalgo português e uma índia caetés. Optou por ficar do lado dos holandeses. Não confiava nos portugueses.
Esse gênio militar brasileiro, que resolveu apoiar os holandeses, foi executado aos 26 anos.
Das muitas tentativas de encontrar as minas de prata na serra, algumas vieram do lado dos holandeses, durante a invasão do território sergipano, entre 1637 à 1645.
Documentos afirmam que três vezes foram mandados homens até a serra, cavando inúmeros sítios mais não encontrando nem prata, nem algo de valor.
O comandante português, Matias de Albuquerque, fugindo para a Bahia, passou por Porto Calvo, onde vivia Calabar. Sem Julgamento, mandou executá-lo por estrangulamento pelo garrote vil, e esquartejá-lo em praça pública. Com a chegada dos holandeses, Calabar recebeu um sepultamento cristão.
Os três filhos de Calabar passaram a receber da Coroa holandesa 8 florins cada, o soldo de um soldado. Calabar era brasileiro, ao apoiar a Holanda, não traiu ninguém. Chico Buarque acertou, em sua versão na peça: “Calabar: elogio a traição”.
Domingos Fernandes Calabar (1609 – 1635), nasceu em Porto Calvo, Alagoas. Fez parte de uma expedição holandesa em busca das encantadas minas de prata de Itabaiana.
Calabar não encontrou a Minas de Prata descobertas por Melchior Dias Moreia, dos primeyros naturaes da Bahia, primo de Gabriel Soares de Souza, homem abastado de terras e de bens".
Era este Melchior Dias, filho de Vicente Dias, português e fidalgo, criado do infante D. Luiz, o qual, ao vir tentar fortuna no Brasil, se casara com a mameluca Genebra Álvares, filha de Caramuru. Era conhecido pelo povo, como Melchior Dias Caramuru.
Espero que os competentes historiadores nativos, esmiúcem essa passagem de Calabar por Itabaiana.
Antonio Samarone – médico sanitarista.
sábado, 4 de maio de 2024
MEMÓRIA CULTURAL DA VILLA DE SANTO ANTONIO E ALMAS.
Memória Cultural da Villa de Santo Antonio e Almas.
(por Antonio Samarone)
Os Matapoam (Itabaiana) eram Tupis, expulsos do litoral ou uma sub tribo dos Tapuias (Cariris)? Não sei! Foi nessa terra, que João José de Oliveira (1829 – 1899) veio morar, quando chegou de Portugal, em 1849, para exercer o nobre ofício de ferreiro.
João José sabia ler e escrever, casou-se com Maria Pastora do Sacramento (a mameluca Nananhana), de uma aldeia de Itaporanga.
Tiveram 12 filhos, conhecidos como os “ferreiros” de Itabaiana. Juntos aos fogueteiros, sapateiros, pedreiros, padeiros, marceneiros e alfaiates, compunham as profissões dominantes. Uma terra de camponeses e artesões.
Ouvi falar dos filhos de João José: Bernardino (meu bisavô); Tertuliano; Antonio Joaquim; Josefa Maria (Nanã), mãe de Felismino Fogueteiro; José Francisco; Francisco Antonio (acho que avô de Átalo); Quirino José; Benvindo Francisco; Marianda; Felismino (Nonô), pai de João Marcelo; José Oliveira e Joana Maria.
Em 1926, o meu bisavô, Bernardinho, foi atropelado em cima de um burro, por um trem desgovernado, no povoado Caititu, numa segunda-feira, quando ia comprar ferro em Maruim. Uma morte trágica.
A instituição social que possibilitou a formação do povo brasileiro foi o cunhadismo, velho uso indígena de incorporar estranhos à sua comunidade. Consistia em lhes dar uma moça índia como esposa. Assim que ele a assumisse, estabelecia, automaticamente, mil laços que o aparentavam com todos os membros do grupo.
Por parte de pai, descendo de Ascendino José de Santana, filho de Genoveva, natural da Galícia, e de Josina Francisca Teles, negra, filha de escravizada.
Portanto, declaro-me mestiço de quatro costado.
Descendo de trabalhadores rurais sem-terra, trabalhadores avulsos (pataqueiros), arrendatários, que beiravam a produção agrícola e viviam na mais profunda pobreza. A parte fidalga dessa gente, eram os ferreiros.
Hoje a realidade econômica de Itabaiana é outra, com uma presença marcante da classe média.
A classe média aracajuana é formada, sobretudo, por agentes sociais que se valem dos conhecimentos científicos, filosóficos, artísticos e religiosos como forma de existência.
São professores, funcionários públicos, médicos, advogados, engenheiros, entre outras profissões ditas liberais. Todo o judiciário e o estamento militar. A renda é desigual, mas a pose é a mesma.
Em Itabaiana, a classe média é formada por pequenos burgueses, camponeses em ascensão a uma burguesia mercantil, com renda suficiente para um consumo de luxo e novos investimentos. Uma parcela dos ricos, que ainda não pertence a grande burguesia nacional, dominada pelo capital financeiro. Esse capital, procura formas sustentáveis de investimento.
A classe média de Itabaiana é diferente. Claro, composta também por togados e barnabés, mas em minoria. Majoritariamente, ela é empresarial.
O espirito empreendedor do Itabaianense é anterior a hegemonia Neoliberal. Lá, o empreendedorismo é bem mais que uma ideologia, é um modo de vida. Já se nasce querendo ganhar dinheiro. Cada um é dono do saco de castanha que revende. Talvez seja o segredo do seu desenvolvimento.
Antonio Samarone – médico sanitarista.