Ars Moriendi.
(por Antonio Samarone)
A televisão mostrou o início da vacinação dos idosos como uma carta de alforria. “Vocês agora voltarão a viver, estão libertos da quarentena”, disse o repórter, numa grande mentira.
Um velhinho entrevistado em São Paulo, perguntou ao vacinador se podia tomar cerveja. O profissional disse-lhe que só depois de 24 horas. Não sei de onde ele tirou esse prazo...
Em Sergipe, eles vacinaram apenas os idosos asilados.
Um colega médico desabou emocionalmente vendo o Pai pela televisão, tomando a vacina no Asilo. Com a justificativa de não levar a Covid-19, ele tinha visto o Pai pela última vez em março do ano passado.
Ele hesitou antes de colocar o pai numa Casa de Repouso, mas depois se acostumou, pela conveniência. O doutor justifica como não tendo outra opção: sou filho único, o meu apartamento é pequeno e Rosinha (a esposa) não aceita.
O Pai, 91 anos, tem uma pensão gorda, foi ex procurador do Estado, um homem culto, cabeça boa, mas perdeu a autonomia, devido a uma queda. “Com a morte de mamãe, fiquei sem saber o que fazer. Somos mineiros, não temos outros parentes por aqui”, disse-me ele.
Em Aracaju, mesmo para os idosos ricos, não existem instituições alternativas. Tudo fica ao encargo das famílias ou das Casas de Repousos.
“Meu pai, disse-me ele, nunca aceitou perder o comando da família e não se preparou para a dependência”,
O Pai, na verdade, nunca aceitou perder o controle sobre a sua vida, passando o comando para a medicina ou para a família.
Mas a perda de autonomia sempre chega.
Na última conversa, por telefone, ele ouviu do pai um desabafo: “meu filho, só é possível dar sentido a morte nos enxergando como membros de algo maior, a família, a comunidade, a sociedade. Me tire daqui!”
“Não pude atendê-lo até agora e não sei o que fazer.”
O Pai, indignado, desligou o telefone! A medicalização da velhice e da morte é um castigo para os idosos.
O foco da medicina é estreito, concentra-se na reparação da saúde e não no sustento da alma. A falha é tratarmos as provações das doenças, o envelhecimento e a morte como questões apenas da medicina.
Antes a velhice era tutelada pela religião, com os seus padres e as suas rezas, passamos para a medicina, com os seus médicos e os seus medicamentos. Os idosos são os grandes consumidores dos produtos e serviços do complexo médico industrial.
A solidão é da alma e o uso de psicotrópicos não resolve.
Residências assistidas, com o apoio dos cuidados paliativos, mantendo-se boa parte da autonomia moral e das vontades, como nos Estados Unidos, poderia ser uma alternativa no Brasil?
As casas de repousos foram criadas para liberar os leitos dos hospitais, barateando o enclausuramento dos fisicamente dependentes. O Asilo, geralmente, é uma prisão dos idosos pelo crime da velhice.
A cobertura da vacinação pela TV, criou um paraíso ilusório para os idosos no pós-vacina.
Pensei: é urgente a desmedicalização da velhice. Eu não sei como!
A Sociedade brasileira não colocou esse ponto em pauta. Não está preparada. Imaginem Sergipe...
Precisamos planejar o enfretamento da questão da velhice, futuro certo de todos os que escaparem. O desmonte das políticas públicas e da previdência social são mais graves para os idosos.
Talvez, essa conversa não seja oportuna nesse momento.
Antonio Samarone (médico sanitarista)
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