O Delirium da Quarentena.
(por Antonio Samarone)
A demora ficou rápida. O tempo do confinamento é uma sequência de instantes fragmentados, indistinguíveis, sem rumo e sem destino. O tempo atomizado perde a profundidade.
A quarentena ultrapassou o tempo bíblico dos 40 dias (número da espera, da preparação, da provação e do castigo). O tempo perdeu a narrativa!
A realidade digital é enfadonha, repetitiva, objetiva e sem novidades. A realidade analógica é imaginada, imprecisa, inesperada, subjetiva e cheia de erros. Não tenho interesse nessa troca. Continuo analógico. Entre o erro humano e o acerto da máquina, fico com o primeiro.
As redes sociais criaram uma vida paralela que, aos poucos, substitui a vida presencial. Uma modesta reunião de condomínio consumia uma energia insuportável. Virtualmente, os tempos são encurtados. As pautas são cumpridas com objetividade, sem arrodeio e sem divagações.
Uma violonista itabaianense foi convidada a fazer parte de uma orquestra sinfônica mundial. Cada músico em sua casa, em países diferentes, com o maestro em Berlim. A tecnologia juntou e harmonizou tudo. O concerto foi assistido pela internet, no Pé do Veado, na bodega de Galeguinho.
Os filhos de Caetano acabam de emocionar uma multidão, sem saírem de casa. As antigas turnês pelo Brasil, perderam o sentido.
Ontem eu visitei a Chapada Diamantina, num sobrevoo de 30 minutos, assistindo ao “Brasil Visto de Cima”. Fiquei encantado com a cidade de Lençóis. Esse ano a romaria do meu ”Padin Padre Ciço” será virtual. Já comprei o chapéu de palha e a imagem do Santo pela Amazon. Tudo made in China.
Impressionante como os chineses fabricam chapéu de palha, iguais aos vendidos no Mercado Thales Ferraz. Passei a acreditar que aqueles ovos das Kombis (cem ovos por dez reais), são mesmo fabricados lá. Galinha saiu de moda.
Não tenho visto encontros virtuais (lives) para conversar “miolo de pote”, jogar conversa fora, ter momentos de divagações. Tudo parece muito produtivo. É chato!
Estou sentindo falta de alguns amigos! Das reuniões da confraria da cebola, todas as quintas-feiras, na Praça Luciano Barreto. Ouvir as mesmas lorotas, as mesmas piadas, as mesmas estórias. As antigas novidades são necessárias, reforçam os laços sociais, aprofundam as raízes e sustentam a cultura.
A solidão atrai as demências. Voltamos à caverna de Platão. As imagens do mundo chegam pela internet, sempre distorcidas.
Estou com saudade das feiras livres, do cuscuz com carne de bode, em Zé Buraqueiro, do mingau de puba, das castanhas do Carrilho, do coco mole, de saber as notícias das Flechas, trazida pelo caraibeiro que vende farinha, feita em forno de barro.
Saudade dos papos de feira, “museu de grandes novidades”, com dizia Raul.
Saudade dos feirantes das Palmeiras, para saber as estórias do Zanguê e do Pé da Serra de Itabaiana. Saber as notícias do Bom Jardim e da Cova da Onça. Saber se a Igreja do Barro Preto, que o Padre Edvaldo estava construindo, já acabou.
Me recuso a assistir as missas do Bom Jardim, pela Internet. Na Igreja tem um anjo serafim, aquele de seis asas: duas para cobrir os olhos e não ver Deus; duas para cobrir o sexo e duas para voar. A câmara virtual não capta o anjo.
Por outro lado, a pandemia tornou a vida fora de casa muito chata. Sob o comando das autoridades, a vida se tornou insuportável. O que abre ou não abre, o que pode ou não pode, depende deles.
O cafezinho do Shopping perdeu o sentido! O governador só permite uma pessoa por vez, em pé, e numa distância de três metros e setenta centímetros entre as pessoas.
Tenho a sensação de que estou sendo governado por Faraós, no antigo Egito. Ontem, no calçadão da João Pessoa, tinha um bando de burocratas bisbilhotando a vida dos outros. Sob o comando do Procon. Isso mesmo, do Procon!
Até o bate papo foi criminalizado, sujeito a multas. O governo lacrou as livrarias. Em Sergipe, o livro foi considerado um transmissor da Peste. Tudo para nos proteger.
Para acabar com esses decretos governamentais, tomo até a vacina russa! A pressa é amiga da perfeição.
Antonio Samarone (médico sanitarista)
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