sexta-feira, 11 de outubro de 2024

NOSSOS BRINQUEDOS

Nossos Brinquedos.
(Por Antonio Samarone).

O futebol era uma brincadeira. Nada de “escolinhas”, preparando um futuro profissional. O nosso desejo supremo era bater bola, brincar de bola, jogar pelada, e para isso qualquer lugar servia.

A começar pelo leito da rua. Duas pedras como trave, três de cada lado e uma bola. Cada jogo era uma final de Copa do Mundo. No final, com vitória ou derrota, sobravam os dedos desmentidos, estropiados, os joelhos ralados, a constante peleja pelo gol e a vibração incontida.

À época não existia o VAR. Cada gol era uma confusão, gritos, para saber se foi gol ou foi por cima.

A grande dificuldade da brincadeira era a bola. Ninguém que eu conhecia tinha uma bola. Nossas peladas eram com bola de meia. Explico: se pegava uma meia velha, enchia-se de pano, dava-se uma arredondada e a pelota estava pronta.

Depois apareceu a bola de borracha, um inferno, pulava muito. Finalmente, veio a bola Pelé. Para nossa sorte, Rosa de Rosalvo do Cabo Quirino, criou coragem, foi ao armazém e roubou uma bola Pelé. Até hoje não sei como ele saiu sem ser visto. Foi uma festa no Beco Novo, tínhamos uma bola.

Muito tempo depois, Beijo de Seu Bebé, ganhou do irmão que morava em São Paulo, uma couraça número cinco, quase profissional. Foi a primeira e a única bola de couro em minha rua.

Tudo era difícil.

A bola oficial daquele tempo era uma verdadeira bucha, de couro mal curtido (sola), costurada à mão pelo velho Mestre Dé, que se batesse de jeito, era nocaute inevitável. Chamava-se “bola de boca”. Comprava-se a câmara de ar, que possuía uma válvula comprida conhecida como pito. Ao se encher a bola precisava-se acomodar o pito para dentro, e só depois é que se fechava o último nó. Exatamente na “boca” da bola.

É claro que já existiam as bolas industrializadas, mais parecidas com as atuais, conhecidas como bolas argentinas. Raras e de preço incompatível com o poder aquisitivo daquela época.

Mas voltemos as “bolas de boca”. E quando chovia? Aí, meu amigo, o couro encharcava e a quase redondinha ficava oval e pesava mais de quilo. Era costume antes das partidas passar-se sebo nas bolas, para reduzir os inconvenientes do couro ressecado, e ajudar na conservação de tão raro objeto.

Somente quem conheceu as antigas bolas de boca, as chuteiras de Joãozinho Baú e os antigos “gramados” - na verdade, malicia, barro e piçarra - será capaz de entender o antigo ditado: “futebol é prá homem”. Era mesmo!

As primeiras incorporações tecnológicas do futebol itabaianense foram o suporte, a atadura e o linimento. O primeiro era uma proteção de borracha que se usava sob o calção, com o suposto objetivo de proteger as “partes fracas” do atleta; o segundo era utilizado para enfaixarem-se os pés dos atletas; e o terceiro era uma espécie de óleo canforado que se aplicava nas pernas dos jogadores, de preferência durante um massageamento, que tornavam os membros inferiores brilhosos e escorregadios. Suponho que além de facilitar a massagem, permitia colocar em evidência a musculatura dos atletas.

O atual Bairro São Cristóvão, chamava-se na época “Cruzeiro”, “Avenida”, “Sete Casa”, era o grande celeiro do futebol itabaianense. Do time de Seu Mané Barraca saíram poucos craques.

Seu Manuel, como gostava de ser chamado, era um velho rezador, doutor em mandingas, que quebrava pedras para sobreviver e gostava de futebol.

Seu Manuel tinha um time de meninos, os “11 perigos”. Em frente à sua casa existia um bom campo de pelada, que a molecada do Beco Novo usava com frequência. Era difícil derrotar o time de seu Manuel em seus domínios, principalmente com ele apitando. O clássico das manhãs de domingo, era o time de Carlos Alberto Pinheiro (“Bem”), (onde eu jogava), contra o time de seu Manuel. Uma disputa à altura de um fla-flu, com Maracanã lotado.

Seu Manuel era de família tradicional em Itabaiana, “os Barracas”, seu Euclides, guarda-noturno e fiscal do cinema de Zeca Mesquita; seu João, sapateiro, simpatizante do comunismo, pai dos craques Cosme e Damião, que não foram mais longe no futebol porque eram muito franzinos, os dois juntos não pesavam mais de 30 quilos. O Cosme, mais magrinho, era um virtuoso com a bola nos pés. Gente respeitada.

Eu já nasci querendo ser um centro avante (center forward), e em parte conseguir. Fui titular do São Paulo de Roberto de Orece, do Bahia de Melcíades, do Santos de Avací e do Cantagalo de Chico.

Na década de 1960, o Dr. Pedro Garcia Moreno aceitou tomar conta do Itabaiana. Foi uma revolução, resolveu criar um juvenil, e entregou o comando a um disciplinador, Miguel de Rola. Com ele aprendi a chegar na hora nos compromissos.

Os meninos foram chamados para fazer um teste, sábado pela tarde, no velho Etelvino Mendonça. Era a minha chance. Como já trabalhava fichado, aos 14 anos, os treinos aos sábados seria um problema, mas dava-se um jeito.

A primeira dificuldade foi escolher a chuteira. Dr. Pedro encomendou 30 pares a Joãozinho Baú, como éramos meninos, a maior era 42. Ninguém poderia adivinhar que aos 14 anos eu já calçasse 44. E agora, a minha primeira chuteira era bem menor que o meu pé.

Acostumado a jogar descalço, a chuteira fazendo calo, os pés queimando, e sem poder perder a chance. Minha carreira futebolística não poderia ter ido longe.

Em 19 de novembro de 1969, aos 15 anos, eu estava ao pé do rádio, emocionado com Pelé, que dedicou o seu milésimo gol as crianças pobres do Brasil.

Mamãe, sentada na máquina de costura, cansada da vida, das dificuldades da pobreza, me chamou a realidade: - “vá estudar, a escola é o único caminho. Através do futebol, não é possível sair do buraco. Pelé só tem um. O funil é muito estreito.”

A escola pública, era um caminho generoso de ascensão social. Deu certo. Virei cidadão! Quando recebi o diploma de médico, mamãe sentenciou: - “você me deve muito!”

Devo!

Antonio Samarone. Médico sanitarista.
 

Um comentário:

  1. Eu quero e ver macho, com mais de 50, pra não se derreter com essas lembranças. Tenha vivido a infância na cidade, ou na zona rural; na periferia itabaianense, ou carioca e paulistana. Todo mundo tem uma história, de amor é ódio, envolvendo a pelada, as piçarras, as maliças e até cansanção; as japonesas (ricos usavam havaianas), pedras ou pedaços de pau, servindo de trave.

    ResponderExcluir