A Gamela Profunda.
(por Antonio Samarone)
Quando cheguei à Aracaju, na década de 1970, me enturmei com os alternativos da Atalaia Nova. Gente que lutava por liberdade, cada um a seu modo. Hippies, anarquistas, Hare Krishnas, stalinistas, porras-loucas, bichos-grilos, trotskistas e intelectuais rebeldes.
A Atalaia Nova, guardando as proporções, foi a nossa Arembepe, com os limites da caretice sergipana. Nas férias escolares, se tornava uma Aldeia livre, de baixo custo. Uma fauna completa.
Frequentar a Atalaia Nova era uma senha para ser bem recebido entre os jovens pensantes daquele tempo.
Entre os intelectuais rebeldes, o mestre Alan se destacava pelo radicalismo e erudição. Branco, cabeludo, tirado a bonito, músico, barbicha no queixo, ateu, tiracolo de couro cru, o único que falava do comunismo com autoridade. Tinha lido Marx e Lenin.
Alan cultuava um portentoso cachimbo de jacarandá equatoriano e só usava fumos tipo exportação. Espalhava as baforadas nas ventas das meninas, no boteco de Seu Mauro, um nativo, que fazia a melhor farofa de peixe da Ilha.
Alan era o único que tinha lido Krupskaia, e pregava o feminismo russo para as incrédulas. Ele mesmo, um sertanejo das bandas da Borda da Mata, machista até a raiz dos cabelos, mas fazia sucesso com o seu discurso libertário.
Eu, tabaréu recém chegado, me impressionava com a sabedoria do mestre Alan do Cachimbo.
Os ateus de Itabaiana eram quase todos camuflados, sempre com um pé atrás. Alam era um ateu declarado. Um rebelde que não temia nem os castigos de Deus!
Com o relaxamento da quarentena, deu-me saudade do velho Guru. Por onde anda Alan, o amante da liberdade? Para minha surpresa, o mestre Alan cumpre um confinamento monástico. Não põe a cabeça de fora, com exagerado medo da Peste.
Alan, o velho marxista, trocou a liberdade pela segurança. Ganhou uma Gamela de mulungu, com dois metros de comprimento e um e meio de fundura. Mandou buscar as ervas do Nepal, o puro incenso indiano, entregando-se a uma meditação tibetana, transformando a gamela num ofurô budista.
Uma ironia da história, os atuais confinados pertencem à geração Baby Boomers, protagonista de maio de 68, dos grandes festivais de música, da liberdade sexual e da revolução cultural.
Gente despreocupada, até a chegada da pandemia. Tudo agora está organizado em torno de seu cuidado e isolamento.
Em um mundo incerto de perigos crescentes, a liberdade não é mais buscada, mas sim a segurança, e não precisamente pelo poder, mas pela reclusão, prudência e tecnologia.
Os confinados sonham com uma vacina salvadora.
Em um mundo tumultuado, a vacina que nunca foi consenso, também enfrenta resistências ideológicas. Só que dessa vez, a resistência vem pela direita.
Antonio Samarone (médico sanitarista)
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