O Fim dos Sonhos.
(por Antonio Samarone)
(por Antonio Samarone)
O homem ocupou a terra, sonhando com utopias. O iluminismo e progresso foram grandes sonhos. O sonho nos permitiu voar.
Na Era digital, o pensamento limita-se as objetividades. Somos os idiotas da objetividade (Nelson Rodrigues). A inteligência artificial não sonha, sua principal limitação. Os algoritmos são binários, não sonham.
Na Bíblia, tal como no pensamento grego, o sonho era considerado uma importante fonte de conhecimento.
No Antigo Testamento, o sonho é uma das vias utilizadas por Deus na sua comunicação ao homem, um meio de revelação, incidindo particularmente sobre o futuro.
Entre os Gregos, merece destaque o corpus hipocrático. No tratado do Regime, IV, dedicado aos sonhos, parte-se da afirmação da influência do sonho sobre todos os aspectos da vida humana.
A significação profunda do sonho reside em que as funções relevantes do corpo, em virtude de este cessar a sua atividade durante o sono, passam a ser desempenhadas pela alma.
Liberta do corpo, a alma reforça a sua atividade e manifesta realidades que permanecem ocultas ao olhar vigile, em que a vinculação da alma ao corpo limita a sua visão.
O Renascimento foi o reino da imaginação, o esforço de saltar para lá dos limites da percepção comum, na procura entusiástica das maravilhas escondidas na natureza.
O movimento não era no sentido de abandonar a natureza para se maravilhar com os prodígios, mas no de naturalizar os fenómenos prodigiosos e extraordinários.
Qual a pertinência da utilização do sonho no exercício da medicina?
Freud, numa atitude de grande ousadia, reabilitou o sonho como objeto científico ao reconhecer nele uma estrutura internamente coerente e prenhe de sentido, vendo no estudo dos sonhos a via régia de acesso ao inconsciente, às profundezas da psique.
O naturalismo do Renascimento respondeu ao intento de uma racionalidade que se não satisfaz com a fronteira habitual entre natural e sobrenatural.
Os mirahilia, amplamente descritos na literatura renascentista, atestam a presença de uma ordem mais complexa do que aquela que a ciência comum reconhecia. O conflito entre fé e razão não é a descrença, mas um novo entendimento das relações entre elas.
A crença no milagre e na eficácia das forças sobrenaturais, sejam elas angélicas ou demoníacas, em nada interfere com a procura de explicação para os fenómenos mais insólitos que se apresentam.
A medicina tratava o doente como um ser global, não a doença como entidade nosológica tomada em si mesma. O tratamento da afecção local, para a qual se requer um saber específico, visa restituir a integridade do organismo e do eu que padecem. Por isso os sonhos eram considerados.
É difícil determinar um momento preciso em que tenha ocorrido o descrédito do sonho.
O troca do pensamento analógico por verdades matemáticas, empobreceu as narrativas humanas. A verdade de uma narrativa independe da sua ocorrência. Foi a mente humana que deu sentido a história, deu significados a vida.
O pensamento estatístico fragilizou a arte médica, tornou-a mais difícil. A principal missão da medicina é aliviar o sofrimento humano, por isso as contradições insanáveis da medicina de mercado.
No mundo pós pandêmico, precisamos restituir a centralidade dos sonhos, das fantasias, do ócio e da contemplação. Que renasçam utopias (velhas e novas), que prevaleça as miragens, as crenças no impossível.
Que o milagre produtivo da ciência e das novas tecnologias, nos restitua o tempo tomado pela esfera econômica.
Que a automação, a inteligência artificial, a quarta revolução industrial 4.0, que tornará os processos de produção mais eficientes, autônomos e customizáveis, venham em nosso favor.
Não custa sonhar...
Antonio Samarone (médico sanitarista)
Beleza de texto, beleza de sonho de que volte a utopia, varrida do nosso contexto. Será que o pós-pandemia fará esse milagre?
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